Os olhos da rua e a soma das trivialidades
Eu amo quando consigo fazer uma linha de raciocínio e criar um conteúdo consistente por semanas aqui mas, hoje, vou fazer uma breve pausa na nossa série sobre “o olhar” para comentar brevemente outros olhos; “os olhos da rua”, que segundo Jane Jacobs seriam os responsáveis por aumentar a segurança das cidades.
“(…) devem existir olhos para a rua, os olhos daqueles que podemos chamar de proprietários naturais da rua. Os edifícios de uma rua preparada para receber estranhos e garantir a segurança tanto deles quanto de moradores devem estar voltados para a rua.”
Jane Jacobs (p.36, 2009) em Morte e Vida de Grandes Cidades.
Eu fui de uma geração que teve acesso a Antonio Prata na Capricho e sua coluna “estive pensando”. Uma das colunas que mais me marcou no alto dos meus 10-12 anos, foi uma na qual ele comentava: “Que bom seria se os vizinhos ao invés de baterem na nossa porta para pedirem para abaixar o som, pedissem o nome do cd que está tocando”. Veja bem, décadas se passaram e eu nunca vi um vizinho batendo na porta do outro, nem pra pedir pra abaixar o som, nem pra perguntar qual o nome do cd. Em contrapartida, a tecnologia evoluiu a ponto da podermos clicar no botão do Shazam e instantaneamente saber qual música está tocando - onde quer que estejamos. A tecnologia também permite que passamos dias sem ouvir a voz de qualquer pessoa, pois, hoje em dia até o porteiro prefere avisar por mensagem no WhatsApp que a encomenda chegou do fazer uma ligação pelo interfone. Meu interfone passa dias no modo silencioso. Às vezes, eu sequer lembro que ele existe.
Eu não sei você, mas eu cresci num edifício no qual comunidade era uma palavra facilmente aplicada - existiam ali laços fraternos entre os vizinhos; de ajuda, de amizade... eu vivi na prática o que é ter uma rede de apoio. Quando a minha mãe precisava de uma xícara de açúcar para terminar o bolo, ela me mandava no nono andar. Quando o vizinho de porta precisava de gelo pra fazer fisioterapia, batiam lá em casa. A vizinha do um dava carona pro meu irmão ir pra escola… e assim a vida acontecia. A vizinha de cima até bateu lá em casa algumas vezes as 3 da tarde para pedir pra abaixar o som, mas.. eu nem conto, afinal, a lei do silêncio é depois das 23h, certo?
Hoje, este prédio no qual eu cresci já não é mais assim, pois assim como a vida, ele passou por transformações; virou um lugar de novos encontros. Muita coisa aconteceu nessas décadas - pessoas foram embora, a pandemia afetou e muito aquela comunidade, algumas pessoas mudaram, outras chegaram... A comunidade mudou, eu mudei, todos mudamos. Eu não moro naquele prédio desde 2009, apesar de visitá-lo com frequência. E eu também fui me inserindo em novos edifícios e novas dinâmicas. Há 10 anos moro num apartamento que pode ser considerado o extremo oposto daquele que habitei na infância e adolescência. Alguns vizinhos não falam “bom dia” para os outros. É possível passar a manhã em silêncio na piscina mesmo que outras pessoas estejam dividindo o espaço. Não há, pelo menos pra mim, um senso de comunidade embora exista muita civilidade. Poucos são os habitantes daquele espaço que interagem ali. Se eu precisar de uma pitada de sal, é mais fácil eu sair correndo de pijama em direção ao mercado do que encontrar alguém casa com o saleiro a postos.
Vinícius de Moraes já dizia: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Eu acredito que muitas vezes o sucesso de uma comunidade ou de um grupo de pessoas é o encontro delas num determinado tempo.
Romances, filmes e séries foram escritos a respeito de vizinhos. No entanto, foi Jane Jacobs, uma urbanista autodidata e sem treinamento formal, que nos alertou, lá nos anos 1960, sobre a importância deste relacionamento entre vizinhos para a criação não apenas de uma rede de apoio mas também como forma de se ter um olhar vigilante em relação à cidade, em especial a sua segurança. Aliás, ela foi até retratada em um seriado.. Em “The Marvelous Mrs Maisel” a personagem principal, Midge, vai parar no meio de um protesto em Nova York liderado por Jane Jacobs e pergunta: “Quem é essa Jane Jacobs?”. Jane Jacobs foi uma urbanista e teórica comumente reconhecida pelo seu trabalho que fala sobre a importância do uso misto na composição do tecido urbano para a segurança das pessoas na cidade. Um famoso livro seu é o: Vida e morte de grandes cidades.
Acerca dos olhos da rua: eu conheço o dono do restaurante da frente, os funcionários do restaurante da esquina, o porteiro da escola da rua, mas eu não sabia identificar quem era ou não meu vizinho, ao ponto de ter falado pra um morador que o porteiro iria identificá-lo, mas que ele precisaria esperar no portão. Um outro vizinho ficou preso no elevador, e sem o contato de alguém do prédio, ele mandou mensagem pro dono do restaurante que veio pessoalmente avisar o porteiro do que estava acontecendo. Eu então me preguei pensando em como reverter esta situação, pois nós já tínhamos os olhos da rua, mas a relação entre os próprios vizinhos? Jane Jacobs fala algo interessante sobre isso:
“Ninguém pode manter a casa aberta a todos numa cidade grande. Nem ninguém deseja isso. Mesmo assim, se os contatos interessantes, proveitosos e significativos entre os habitantes das cidades se limitassem à convivência na vida privada, a cidade não teria serventia. As cidades estão cheias de pessoas com quem certo grau de contato é proveitoso e agradável, do seu, do meu ou do ponto de vista de qualquer indivíduo. Mas você não vai querer que elas fiquem no seu pé. E elas também não vão querer que você fique no pé delas.
Ao falar a respeito da segurança nas calçadas, mencionei a necessidade de haver, no cérebro por trás dos olhos atentos à rua, um pressuposto inconsciente do apoio geral da rua quando a situação é adversa – quando um cidadão tem de escolher, por exemplo, se quer assumir a responsabilidade, ou abrir mão dela, de enfrentar a violência ou defender desconhecidos. Existe uma palavrinha para esse pressuposto de apoio: confiança. A confiança na rua forma-se com o tempo a partir de inúmeros pequenos contatos públicos nas calçadas. Ela nasce de pessoas que param no bar para tomar uma cerveja, que recebem conselhos do merceeiro e dão conselhos ao jornaleiro, que cotejam opiniões com outros fregueses na padaria e dão bom-dia aos garotos que bebem refrigerante à porta de casa, de olho nas meninas enquanto esperam ser chamados para jantar, que advertem as crianças, que ouvem do sujeito da loja de ferragens que há um emprego e pegam um dólar emprestado com o farmacêutico, que admiram os bebês novos e confirmam que um casaco realmente desbotou. Os hábitos variam: em certas vizinhanças, as pessoas trocam impressões sobre seus cachorros; em outras, trocam impressões sobre seu senhorio.
Grande parte desses contatos é absolutamente trivial, mas a soma de tudo não é nem um pouco trivial. A soma desses contatos públicos casuais no âmbito local – a maioria dos quais é fortuita, a maioria dos quais diz respeito a solicitações, a totalidade dos quais é dosada pela pessoa envolvida e não imposta a ela por ninguém – resulta na compreensão da identidade pública das pessoas, uma rede de respeito e confiança mútuos e um apoio eventual na dificuldade pessoal ou da vizinhança. A inexistência dessa confiança é um desastre para a rua. Seu cultivo não pode ser institucionalizado. E, acima de tudo, ela implica não comprometimento pessoal.”
Jane Jacobs (para. 59 e 60, 2009) em Morte e Vida de Grandes Cidades.
Eu posso não saber quem são todos os vizinhos, mas converso com alguns… Como a senhora do sétimo andar que esses dias, ao me ver voltando da feira com um punhado de erva cidreira, me ensinou a fazer um suco de erva cidreira com hortelã maravilhoso. Com a vizinha do quinto andar, pois levávamos os cachorros no mesmo Pet Shop. E a do primeiro também, que depois de tantos cumprimentos já me pediu ajuda no mercado um dia... ou a do décimo andar que depois de eu ensinar a fazer iogurte me presenteou com um pão caseiro maravilhoso, que parecia os que a minha bisa fazia.. e assim por diante.
Essa trivialidade, como Jane Jacobs coloca, é pequena, mas é na sua soma que ela faz a diferença. Pensando nisso, no ano passado, eu então sugeri que deveríamos fazer um evento para conhecer os vizinhos e incentivar um pequeno aumento dessas trivialidades, já que passamos por um período de alta rotatividade de moradores. O síndico apoiou a ideia, e uma vizinha idosa, supersociável, também e o melhor: fez com que eu deixasse meu perfeccionismo e planejamento de lado, organizando um evento em 12h.
E, assim fizemos. O evento aconteceu ontem. Recebemos um número interessante de moradores. Vi alguns trocarem contatos. Ouvi a história de como um casal de diferentes nacionalidades se conheceu e veio parar aqui. Escutei atenta histórias sobre a cidade, viagens e tantos encontros! Acho que agora as manhãs de sol na piscina terão mais barulho, alguns vizinhos se sentirão mais a vontade pra falar um “Oi” despretensioso ou até pedir aquela xícara de açúcar, sabe? É uma forma de querer facilitar mais encontros nestes espaços comuns. Se isso vai acontecer, eu não sei. Mas, só do fato de eu saber se a pessoa que está tentando pegar uma carona no portão da entrada comigo é de fato um vizinho, já faz com que eu me sinta muito mais segura. O morar tem muito disso! A nossa casa é o nosso ambiente seguro. E ter encontros felizes faz parte dessa segurança.
Semana que vem enviarei uma edição acerca do “Compartilhamento do olhar”. Até breve!
Obrigada, Heliana 🥰
ótimo e reflexivo texto .. abraços