Amizades, joias e coleções
Eu não sei você, mas eu sou o tipo de pessoa que consegue passar dias sem ligar a televisão. Aliás, durante a faculdade isso foi muito comum. Eu costumava assistir um filme ou outro, mas nunca durante a semana, sempre aos sábados ou domingos. Acho que eu também ia mais ao cinema naquela época. Sempre fui a pessoa que gosta de ir ao cinema sozinha para não perder nenhum detalhe, já que eu presto a atenção em cada detalhe do filme: o figurino, o cenário, a trilha sonora…
Recentemente, acompanhei - via Instagram - a construção do figurino para o “black and White ball” de Truman Capote que aconteceu 1966, recriado em “Feud: Capote você the Swans”, pelas mãos do estilista Zac Posen. Ainda sem previsão de estreia no Brasil, a série de Ryan Murphy narra a história da intriga causada por Truman Capote ao contar segredos de seu seleto grupo de amigas-socialites (as swans/os cisnes) em um livro, cujo capítulo vazou na revista Esquire. Eu tenho consumido todos os spoilers possíveis de tão ansiosa para ver os detalhes da série.
Uma coisa me chamou a atenção na fala do estilista. Ele comentou que estava pesquisando como reproduzir os figurinos do baile, quando o criador da série o deu liberdade para que ele criasse de acordo com o que desejasse. Truman Capote dizia ter cunhado um termo chamado “nonfiction novel”, ou seja, um romance de não ficção. Acho que, possivelmente, é isso que Murphy tem feito com “Feud: Capote vs the swans”, não há um compromisso ali em retratar tudo nos mínimos detalhes, o que ele faz então é se permitir recriar uma história a partir de uma narrativa com alguns elementos-chave.
De todos os episódios, eu estava ansiosa pelo famoso “Baile do branco e preto” e me surpreendi quando vi que ele foi o tema do terceiro episódio da série. Ao acompanhar os detalhes compartilhados por Zac Posen, eu literalmente gritei quando vi que ele colocou um colar de Calder no figurino de Molly Ringwald, que interpreta Joanne Carson. Esse detalhe pode parecer pequeno, mas logo me fez questionar se era era amiga do artista, uma vez que sabemos que Calder presenteou mulheres próximas com joias. O colar, que pode ser visto na imagem abaixo, é um design real e foi emprestado pela Calder Foundation para complementar o figurino proposto, como divulgou a fundação em posts nas redes sociais. A organização é atualmente dirigida pelo neto do artista, Alexander S C Rower. Enquanto as outras personagens usam jóias com pedras preciosas, acho que a Joanne Carson fictícia foi a privilegiada de usar uma “verdadeira” obra de arte no set.
Antes de continuarmos, vale comentar que as swans foram colecionadoras de arte, isso também é refletido na série logo no primeiro episódio, quando Babe Pale, interpretada por Naomi Watts, comenta que está “de olho” em um Matisse ou em um Gaugin que iria a leilão na Sotheby’s. Outra swan, CZ Guest, interpretada por Chloé Sevigny, chegou a ser retratada por pintores como Salvador Dalí e o muralista mexicano Diego Rievera, marido de Frida Kahlo. Lee Radziwill, irmã de Jackie Kennedy, era mais clássica, mas também teve o privilégio de ter sido retratada por Andy Warhol, como mostra este artigo do The Art Net. . Aparentemente, foi após uma viagem à Itália que ela se encantou com o renascimento. Sua coleção foi leiloada pela famosa casa de leilão Christie’s em 2019 e, dentre os itens, um se destaca: um diário de viagem que fez junto de Jackie, com fotos e ilustrações feitas pelas irmãs. Até renomada casa de leilão Sotheby’s comentou as coleções de Guest e Pale e suas relações com a arte em seu Instagram. Aparentemente, esta série tem agitado as redes sociais do mundo da arte.
Como já comentamos por aqui, Alexander “Sandy” Calder era um apaixonado pelo Brasil, e se inspirou no país para criar obras antes mesmo de vir ao país, como fez algumas vezes. Na década de 1930, ele vendia joias como forma de ter uma renda extra. Ao longo de sua vida, segundo este artigo, ele fez quase 2 mil joias, sendo que no começo, alguns broches foram vendidos por 25 dólares. Para Abigail Cain, autora do artigo, as joias eram uma forma de “transformar pessoas em esculturas vivas”. Logo, as joias de Calder se tornaram itens desejados pelas socialites de Nova York, por isso não é de se estranhar a escolha de Zac Posen de adornar um vestido com um dos colares do artista. Ainda segundo o artigo, as joias era uma forma da espacialização do olhar de Calder em uma escala menor. Um broche de Calder chegou a ser leiloado pela Christie’s por 125 mil euros em 2018. Um broche de figa, como o que ele apresentou duas brasileiras quando esteve de passagem pelo Brasil, 75 mil dólares em 2019. Ele presenteava amigas e amigos próximos com itens de joalheria feitos por ele. O pintor Miró, por exemplo, ganhou dele um anel, a pintora Georgia O’Keeffee um broche com as iniciais OK. E, por falar nela, preciso me dedicar a ler “My Faraway One: Selected Letters of Georgia O'Keeffe and Alfred Stieglitz: Volume One, 1915-1933”, o primeiro volume de uma série de livros com as algumas das cartas que ela enviou ao marido, o fotografo Alfred Stieglitz, com quem foi casada de 1924-1946. “Curtinho”, o primeiro volume tem quase 900 páginas, por isso o desânimo. Está no Kindle, esperando pelo dia que vou continuar a ler para além da introdução.

A brasileira Lota Macedo Soares, amiga e compradora de suas obras, recebeu dele, em 1948, um broche como este, em formato de figa, como conta Roberta Saraiva em Calder no Brasil, livro que narra as viagens que o artista fez ao país. Lota foi apresentada a ele por Elodie Osborne, que à época trabalhava no MoMA, nos Estados Unidos no começo da década de 1940. Lota era admiradora do trabalho de Calder. Não demorou até que se tornassem amigos, uma amizade que durou anos e cujas correspondências sobrevivem em acervos no Vassar College e na Calder Foundation. No filme de Bruno Barreto, “Flores Raras”, o broche de Calder usado por Lota, interpretada por Glória Pires, se parece mais com este aqui. A casa da urbanista era Samambaia, projeto laureado de Sergio Bernardes na Segunda Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (1953) que você pode ver aqui. No filme, a casa utilizada como cenário, foi a Casa Cavanelas, de Niemeyer. Aliás, é para lá que está indo o acervo de Roberto Burle Marx, como noticiou a Folha esses dias. Na época do lançamento do filme, Kykah Bernardes, viúva do arquiteto Sergio Bernardes, chegou a escrever um artigo para a revista Vitruvius chamado “Fatos raros: Quando a ficção não é melhor que a realidade” no qual expõe como todos perdemos quando não há compromisso de obras de ficção em retratar a verdade, ainda mais neste caso quando obras se reverenciam. O texto dela merece ser lido.
Não me recordo muito do filme para além de seus erros e claramente não recomendo o filme. O livro “Flores raras e banalíssimas” de Carmen L. Oliveira, que inspirou o filme, contém em si detalhes interessantes acerca da vida de uma mulher que viajou e trouxe referências interessantes no repertório e na bagagem, e que recebia pessoas como Audus Huxley, autor de “Admirável Mundo Novo”, como hóspedes em sua casa.
Algumas mulheres usavam broches, outras pulseiras e até colares de Calder, mas a galerista Peggy Guggenheim tinha um par de brincos - e uma cabeceira de cama exclusiva, como pode ser visto aqui, e da qual ela muito se gabava. Já comentei sobre a colecionadora aqui brevemente, mas vale dizer que alguns itens de sua coleção de arte podem ser vistos neste link.

Em seu livro de memórias, Peggy Guggenheim chegou a comentar que foi a um evento usando um brinco feito por Yves Tanguy e outro de Calder como complementos de seu vestido de festa de branco, “para mostrar imparcialidade entre surrealismo e arte abstrata”. Eu achei isso incrível quando li. Mostra como ela usou o poder de comunicação de suas joias, uma linguagem não verbal, no dia da inauguração de sua galeria. Uma forma sutil de passar uma mensagem. Se eu fizesse um filme de Peggy um dia, este seria um detalhe que não deveria passar despercebido.
Eu fiquei curiosa pesquisando se Joanne Carson foi amiga de Calder, e não encontrei evidências sobre isso, o que me levou a crer que ela possivelmente “comprou” aquele colar (entre aspas pois estamos falando de ficção e não sei se era verdade) e tudo bem, minha motivação era entender mais sobre essas mulheres que estavam em torno do artista e se ela fazia parte deste seleto grupo ou não. No entanto, pude ver que um grande número de exemplares de joias feitos por Calder estiveram em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, em 2021. A exposição Alexander Calder: Modern from the start resultou na composição de um catalogo supervisionado pelo neto do artista e que está disponível para venda aqui.
Calder não foi o único artista que se enveredou pelo mundo da joalheria. Gosto sempre de lembrar do trabalho da artista têxtil, gravurista e também colecionadora de arte, Anni Albers. Na década de 1940, ela experimentou criar diferentes peças com materiais do cotidiano como arruelas, fitas de veludo, clips ou grampos de cabelo - veja aqui alguns dos modelos. O interessante é que esta é uma experiência a um preço acessível (18 dólares) - você compra o material e constrói a sua peça seguindo as instruções. Eu mesma tenho um colar de Annie Albers (foto abaixo) comprando numa exposição que fui em comemoração aos 100 anos da Bauhaus, em 2019 - e sim, eu demorei até conseguir montá-lo, não foi simples. O trabalho para idealizar estes kits foi feito em parceria com Alex Reed, também professor de Black Mountain College, onde Albers lecionava à época, e foi inspirado em objetos encontrados no México, feito por antigas civilizações que combinavam diferentes materiais p compôr diferentes itens. Albers acreditava que materiais simples também poderiam ser considerados bonitos. Ela acreditava que construir joias com materiais simples, era uma forma de transformar o simples e de valorizar algo pelo simbólico e não por seu valor monetário.
Vale a pena ler:
Anni Albers “On Jewelry” (1942) | Talk at Black Mountain College, March 25, 1942
História em Quadrinhos: Drawn to Art: Tales of Inspiring Women Artists | Anni Albers (2021) “Conhecida por ter transformado tecido em arte”.
Me pergunto se a Maison Margiela se inspirou em Annie Albers em algum momento para criar o vestido feito com alfinetes - tal como usado no Grammy.
Ao escrever esta edição, me lembrei também dos irmãos Burle Marx, Roberto e Haroldo. Sim, o paisagista brasileiro também fez joias - mas, neste caso, diferente dos outros, ele não fez esculturas em menores escalas, ou tentou ressignificar objetos, ele fez alta joalheria com ouro e pedras preciosas. Em 2022, a galeria paulista Arte 123 fez uma exposição dos desenhos de joalheria destes irmãos. O traço moderno de RBM se unia ao trabalho de ourivesaria de HBM e as pedras preciosas compondo verdadeiras obras de arte. Aparentemente, RBM fez os desenhos no mesmo períodos do Aterro do Flamengo. Segundo o release da galeria, foi uma americana influente, que se tornou amiga de HBM, que fez com que o trabalho dele fosse comercializado nos Estados Unidos, tendo sido divulgado em grandes veículos de moda e adornado celebridades como Natalie Woods, e realeza como a Rainha Margarida II da Dinamarca. Segundo Marion Fasel as joias refletem “o espírito do Rio”. Os desenhos feitos em papel preto valem o clique; são uma obra de arte por si só: Jewels by Brazil’s Burle Marx Brothers. Alguns exemplares ainda podem ser encontrados em sites como o 1stDibs ou na Galeria especializada em jóias do século XX, a Mahnaz Collection, em Nova York. - Cuidado, eu me perdi por um bom tempo neste site com a coleção que eles tem.

Eu amo cenários e figurinos, interior styling e décor pois as peças nos apresentam muito mais do que apenas a beleza (ou ausência delas); elas são elementos importantes que dão apoio e adicionam detalhes à narrativa. No post de hoje, eu nem ia mencionar o colar de Calder, meu objetivo era falar sobre coleções e viagens e como alguns itens expostos em nossas casas contam histórias de viagens e de viagens que talvez nem tenham sido feitas por nós, mas achei que seria interessante comentar a série, já que eu ia comentar uma outra série também, e o post foi crescendo e se transformando. Menos textos e mais imagens desta vez. Precisaríamos de muitos posts para comentar isso, mas eu ainda acho que pouco se fala em como mulheres tiveram um papel importante no mundo das artes no começo - até o meio do século XX. E como suas posições sociais foram fundamentais para que elas agissem como facilitadoras de projetos culturais ou artísticos. Eu tenho pesquisado isso cada vez mais e sempre encontro algo interessante, especialmente sobre suas coleções.
Sabe o que eu gosto em leilões de arte? Ver como um item se transforma de acordo com sua história e a valorização posterior. Foi por meio do catálogo deste móbile de Calder num leilão da Christie’s que eu tive um insight para a sustentação da hipótese da minha tese. Amo ler o catálogo, entender a origem de uma obra, sua história, e o caminho que percorreu pelo mundo até chegar até aquele leilão. Acho que um leilão de coleção de arte é diferente de um leilão de espólio como no caso de Lee Radziwill. Estes me deixam um pouco reflexiva. Ver como sua casa foi desmontada - sofás, livros, jogos de jantar... Sua coleção, fragmentada. Acho que é porquê mexe com a casa/lar/os vestígios de viagens e experiências vividas. Vemos então a vida de uma pessoa ser fracionada e leiloada aos poucos. Existe uma beleza em poder manter o acervo de uma pessoa, a documentação de uma vida ou de seu trabalho - como fizeram com o de Calder e Burle Marx. Penso também em como lidamos com as memórias daqueles que estão perto de nós, como as preservamos para além de seus objetos. E, dentre do patrimônio material, o que escolhemos preservar? Qual a importância do que selecionamos? O texto de Annie Albers sobre as joias acabam tocando um pouco neste tópico: o que valorizamos? Como priorizar valores que não materiais? Como valorizar a simplicidade e o cotidiano e transformar o momentum em algo especial?
Penso que nada é por acaso, e que a edição de hoje tinha de ser assim e não como eu planejava.
Nos veremos semana que vem com uma edição acerca de coleções, o viajar e a casa.
Ps: Semana passada, vi “Upgraded” depois de ler que era “‘O diabo veste Prada’ do mundos das artes” e eu fiquei muito decepcionada, eu só pensava em como Nora Ephron ou Nancy Meyers teriam transformado aquela história em algo mais divertido e interessante. Você viu? Comente comigo!
Amei saber mais sobre as joias dos artistas, não conhecia várias delas 😍 O que é esse bracelete dos irmãos Burle Marx?