Entre rolos de filme e smart houses
Durante a faculdade, podíamos escolher algumas disciplinas eletivas. Era o meu período preferido do ano, pois era quando eu poderia escolher o que eu quisesse fazer. As vezes o catálogo de práticas não era tão interessante, mas as vezes as possibilidades eram tantas que eu me perdia escolhendo. Das eletivas que fiz que mais amei e me recordo estavam: fotografia analógica, mercado editorial e design de joias. Também fiz uma sobre cores e outra sobre fotografia digital.. mas estas nem se comparam ao prazer de fazer a impressão de fotografia, trabalhar com o desenho à mão e conversar acerca de livros impressos e tiragens e acabamentos adequados, naquela época argumentava-se ainda se o e-book ia ou não acabar com o mercado impresso e Kindle, salvo engano, ainda nem existia no Brasil.
Era uma época feliz. Eu saia das aulas de fotografia ou do francês, passava na Blockbuster, alugava ou comprava um ou outro DVD, nos tempos streaming, quando o acesso a filmes nas locadoras ainda era disputado, comprava pipoca e algumas barras de chocolate e garantia a diversão do sábado a tarde já que a tv a cabo repetia muito os filmes naquela época. Até hoje ainda tenho dvds de séries que eu comprei nesta época. A paciência de esperar a próximo episódio chegar, ou de ver o filme apenas no final de semana, pois era quando eu conseguia passar na locadora para buscar algo.
Esses dias, para o casamento de minha prima, eu quis muito comprar um rolo de filme para resgatar a prática da fotografia analógica e me surpreendi com os valores encontrados. Eu sempre tive este sonho de aprender a revelar fotos e consegui realizá-lo em uma destas eletivas o que eu descobri foi sua incompatibilidade com a minha saúde, já que . Não sei o que me cativava na prática, se era a “mágica” do processo como um todo - desde aprender acerca da Camera obscura, que o professor conseguia reproduzir na sala, até ver a mágica do constraste aparecer no papel. Nelson Chinalia, o professor, dizia: “só trabalhamos com fine art” e ele encorajava que encarássemos a fotografia desta forma, como uma arte. Uma das lições mais valiosas que aprendi com lá com ele, lá em 2010 (?!) foi acerca do tempo de apertar o botão. Uma coisa que ele sempre chamava a atenção era que muitas vezes a fotografia digital era um impulso rápido pois poderíamos simplesmente apertar o botão sabendo que poderíamos refazer aquele clique, mas com o número de poses no filme precisávamos pensar mais e mais; a quantidade era limitada.

Sebastião Salgado fala algo semelhante, Para ele, “quem não gosta de esperar não pode ser fotógrafo”, e a máquina é apenas uma ferramenta, já que o que importa é a cultura de quem fotografa, ou seja, o olhar. O fotógrafo brasileiro recentemente teve uma foto sua escolhida para compor uma seleção do New York Times de 25 fotos que definem a idade moderna.
Meu foco de leitura este ano no primeiro semestre era ler mais sobre mulheres que viajam, com isso, tinha acolhido a indicação de uma de ler “É isto o que eu faço”, livro da fotojornalista Lindsey Addario. (Aliás, ela é mencionada na série “Girls on the bus’, disponível no App MAX, que eu adorei ver este ano!) Ao começar a ler “Ensaios sobre a fotografia” de Susan Sontag, eu até posterguei a leitura do livro de Addario pois senti que meu olhar se transformava a ponto de promover uma diferenciação na leitura, ela comenta desde como a fotografia “brinca com a escala do mundo”, e até mesmo de posição do fotógrafo como expectador e a fotografia como testemunho. Em “A inteligência visual” de Amy E. Herman, que eu ainda preciso terminar, a autora menciona a “cegueira por desatenção” - quando a gente vê algo mas não observa, e como a observação é uma fina arte, uma habilidade capaz de revelar mais do que as pessoas dizem/contam não apenas na fotografia mas em diferentes situações.
Já que comentei de mercado editorial, vamos relembrar um clássico: o conto de fadas “João e Maria”, no qual as crianças são atraídas pela casa dos sonhos, uma casa coberta de doces no meio da floresta. Quando entrei na faculdade, a casa dos sonhos que atraía a tudo e a todos e chegava a valorizar (e muito) imóveis no mercado, era uma casa automatizada. Um projeto de automação naquela época era caríssimo, custando até 1/3 de uma obra de padrão médio naquela época… lembro de apartamentos que chegaram a ser anunciados por quase 50% acima do valor de mercado destacando a automação. Inclusive, existia um prédio em Campinas que era reconhecido como “aquele que você bate palma e acende a luz”.
Hoje, automatizar a a casa está mais fácil e também mais barato. Hoje, basta ter uma conta na Amazon, pois a Alexa te ajuda com (quase) tudo. Tutoriais na internet divulgam até como criar arandelas e luminárias sem tomada. Isso mesmo, atualmente existem lâmpadas inteligentes a bateria. Lâmpadas com caixa de som, basta engastar no bocal e ligar via bluetooth. Simples assim. Não há mais a necessidade de projetos tão específicos (óbvio, para algumas situações ainda se faz preciso uma intervenção ou outra) e mil instalações ou cabeamentos para ter a lâmpada que acende com o bater de palmas, basta falar um “hey google, turn the light on” - para uma caixa de som que você consegue deixar até o apartamento alugado “smart”.
Esses dias um post de Andrea Janer, Founder and CEO of Oxygen, no Instagram me chamou a atenção, era foto da capa de um artigo do Financial Times (FT): “Why dumbing down your house could be a smart move” algo como: “Por quê ‘emburrecer’ a sua casa poderia ser uma jogada inteligente” e outro da Town and Country: “The Dawn of the Dumb House” (O despontar da casa burra). O post, foi o suficiente para me jogar numa busca no google que apontou inúmeros artigos acerca de um movimento anti-smart home.
O texto da Town & Country aponta que o movimento “anti-smart house” tem sido visto como um símbolo de status no Vale do Silício. Uma dos fatores mencionados é a ambivalência do poder controlar tudo mesmo que a distância e também de tudo dar errado estando distante de casa. Uma entrevistada comenta: “Eu acho que a tecnologia nos emburrece (…) ela nos faz esquecer do que é significativo e duradouro. E nos deixa com uma falta de atenção terrível”. O artigo ainda comenta que sua casa tem alma, algo que a inteligência artificial nunca terá. Outra coisa que o artigo também destaca é que quanto mais imersos em um tech, menos a pessoa quer que seus filhos tenham acesso à tecnologia e cita também como designers de interiores estão retirando tvs e outros itens dos quartos e também favorecendo outros elementos em oposição aos assistentes virtuais.
Em 2022, na edição #19 da newsletter, comentei sobre infância, criatividade e a casa como espaço de experiências. Nesta edição, trouxe um artigo do El país que mencionava que no Vale do Silício já havia a predileção, por parte dos executivos de tech, de criar os filhos sem telas. Também tem indicação de um trecho de um livro do Daniel Goleman, autor de Inteligência Emocional, chamado "O espírito criativo" que faz menção à infância de um cineasta famoso e o encorajamento da criatividade das crianças.
“Me dá Danoninho, Danoninho já”
Uma coisa que vi recentemente e que me impactou foi uma entrevista acerca da criação da nova embalagem do danoninho, a pouch. O danoninho de potinho vermelho teve uma queda nas vendas e com isso foram pesquisar o porquê e entenderam que foi por conta da perda da capacidade motora fina das crianças que não conseguiam mais abrir sozinhas o potinho do danoninho. No vídeo que vi, Aurélia Picoli, diretora de pesquisa da Play, que trabalhou na pesquisa, menciona que foi esta perda foi em decorrência do uso do touch... Ao observarem a interação das crianças com o produto, chegaram ao desenho do pouch, um squeeze mais simples que é só girar e apertar. Um comentário dela que me chamou a atenção é que elas têm menos paciência pois a geração atual é a geração do “on demand”.
As vezes vemos mas não observamos o problema em algo, talvez aqui caiba o termo da “cegueira por desatenção”, como mencionado acima, mas a verdade é que a soma dos pequenos detalhes pode influenciar até o design de itens que podem passar despercebidos pela no dia a dia.
Ao comentar esta história com a minha mãe, ela disse que na época dela de normalista, havia um cuidado imenso em relação a atividades para o desenvolvimento de capacidades motoras. Eu fico imaginando o que mais tenha sido afetado em termos de design pela ausência deste tipo de capacidade.
Um retrato simples de como os gestos estão se simplificando é esta trend de diferença de gerações que eu vi nas redes sociais. Quanto menos gestos, menos estimulamos o cérebro; logo, menos criativos ficamos. Por isso é tão importante fazer as coisas no modo "tradicional”. Pequenas coisas já influenciam... escrever em papel, por exemplo, Ler em papel também nos afeta positivamente, como já comentamos aqui, pois usamos muito mais o cérebro ao escrever em papel do que digitar. Por isso quis incluir aqui hoje a fala sobre a fotografia não por falar para você sair com rolos de filme por aí, mas para que a gente desenvolva mais a paciência ao invés de fazer as coisas no automático.
Criatividade é uma das habilidades do futuro, devemos estimulá-la constantemente, da forma que for possível. Esta semana, preparando um material sobre Design Thinking, eu recuperei este livro por aqui: Creative Acts for Curious People, da escola de design de Stanford.
Retomando um dos artigos acima mencionados, o artigo do FT quis mostrar não apenas como o detox digital influencia no bem-estar como a ausência de tecnologias na composição do lar favorece os simples prazeres da vida e enumera alguns exemplos como: banhos longos, cozinhar em fogo baixo, ouvir o fogo crepitando na lareira. O que me chamou a atenção foi que artigo ainda apresenta a retomada de um design focado no habitante e não nos milhares de apps que vão orientar as ações tecnológicas, ou seja, é voltar a pensar o espaço pautado pelas experiências humanas, o que me espanta, pois, a meu ver, deveria ser sempre assim.
Saiu esta semana por aqui:
Vou ver essa serie das meninas no ônibus :)