Este texto foi escrito há mais de um ano e está junto de outros 40 textos já iniciados ou terminados, nos últimos quase 3 anos, e que nunca foram publicado aqui no The Mid. Hoje, comecei um processo de revisão destes textos com o intuito de finalmente publicá-los.
No começo da década de 1990, o antropológo francês Marc Augé definiu o que seriam os “não lugares”. Estes espaços que não são considerados lugares são produtos da supermodernidade. Michel de Certau, Walter Benajmin e Bauderlair. Eu vou traduzir isso de forma mais simples, pulando todos esses personagens (que eu ocasionalmente cito aqui): São espaços sem identidades com o qual não criamos vínculos.
Em teoria são espaços pela quais transitamos mas não nos dizem muito sobre o local no qual estão inseridos, exemplo: Aeroportos, estações de trem, rodoviárias, postos de conveniência. Se fossemos pensar de forma literal, seriam espaços de passagem. Também poderiam ser considerados não lugares: hoteis, supermercados… Já vi lojas de grife e Starbucks sendo considerados não-lugares. Acerca do primeiro eu não sei bem o que comentar, o segundo, pode ocasionalmente acabar se encaixando na descrição.
Podemos sim ter experiências nestes lugares, mas não são o tipo de experiências relacionadas à algo histórico ou local, geralmente são experiências mais solitárias, sem vínculos. Para Augé, um lugar - para ser chamado como tal - apresenta história e identidade. Mas aí entra o caso do Starbucks e outras redes multinacionais no mundo. Eu prefiro o Costa Coffee, então vou usá-lo como exemplo dada minha experiência pessoal. Essas redes (nacionais ou globais), apesar de terem todo uma estratégia de marca pensada para serem iguais no mundo todo, funcionam como algo conhecido em um lugar novo. A experiência não é nova, mas é familiar. Quantas vezes eu não fui no Costa Coffee na Índia ou na China por saber que ali eu encontraria o aconchego necessário?
Tenho um casal de amigos - uma internacionalista e um chef de cozinha - que nunca frequentam esses lugares quando viajam. Eles são especialistas em conhecer comida de rua. Fico fascinada pelo forma como se aproximam de outras culturais. Eu evito buscar por esses lugares conhecidos, mas sei que eles podem me apresentar algo familiar quando estou numa cultura muito diferente da minha. Buscar algo familiar numa situação de choque cultural me ajuda muito a passar por essa situação, mas se nos limitarmos à isso, perdemos a oportunidade de conhecer o autêntico, o local.
Mas um comentário que eu gostaria de fazer é que eu vejo muitas pessoas reproduzindo isso, esse ideal de não local de forma inconsciente. Às vezes por falta de repertório ou por falta de um local que já contemple essas características. Eu, por exemplo, não aguento mais ir a locais - cafés inspiradas na França com o mesmo repertório: cores pasteis, foto de Maria Antonieta, Brioches no cardápio, cadeiras medalhão e boiseries nas paredes. Eu me sinto num não lugar, pois não promovem uma experiência diferenciada das outras já conhecidas. Eu acho que devemos, cada vez mais, prezar por criarmos experiências que seja completamente diferentes do que já conhecemos. É preciso ampliar o repertório para criarmos novos lugares e experiências únicas, não reproduzindo o que já é conhecido.
Em 2019, em uma entrevista ao El País, Marc Augé comentou o lançamento de livro à época, chamado “As Pequenas Alegrias”, no qual ele comenta a busca pela felicidade no cotidiano.
À época, antes mesmo do início da pandemia ele já comentava que nossas relações sociais estavam ameaçadas. E propunha retomarmos o encontro. Ao ser questionado sobre os não lugares, ele disse algo muito interessante, veja o recorte da entrevista abaixo:
P: Em 1992, ao detectar os não lugares, o senhor os situou nas periferias, aeroportos... Não tem a sensação de que já se trasladaram para o centro das cidades, todos iguais, com as mesmas megalojas, um shopping center onde só o cartão de crédito fala?
R: Eu iria mais longe: hoje podemos dizer que o não lugar é o contexto de todos os lugares possíveis. Estamos no mundo com referências totalmente artificiais, mesmo em nossa casa, o espaço mais pessoal possível: sentados diante da TV, olhando ao mesmo tempo o celular, o tablete, e com os fones de ouvido ... Estamos em um não lugar permanente. Esses dispositivos estão permanentemente nos colocando em um não lugar. Nós os carregamos não-lugar em cima, conosco...
Recentemente, eu comecei a sair sem celular, para a minha alegria e desespero de alguns. Vejo o movimento de muitos amigos de sair das redes sociais, ou reduzir a frequência de uso, conectando-se ao momento presente, esquecendo até mesmo de fotos e postagens.
Toda vez que eu fui a um lugar único e especial; autêntico, especialmente em viagens, eu me lembro da experiência, em relação ao Starbucks, tudo parece um borrão - é sempre igual. Recordo-me de quando fui à Austin, no Texas, e que me recomendaram ir à um sorveteira não apenas pelo sabor do sorvete, mas pelo malabarismo que o atendente fazia. Esperamos quase uma hora na fila, no SoCO, o local mais badalado da cidade. A sorveteria em si era simples, mas o espetáculo chamava a atenção. O espaço era todo branquinho com linhas retas, sem excessos, abrilhantado pelas cores dos sorvetes . Anos mais tarde, em Boston, me recomendaram ir numa outra sorveteria. Ao chegar lá, era uma rede de sorvetes que fazia um sorvete em forma de rosa, no entanto era a mesma experiência que eu teria em qualquer outro lugar da rede, como em Roma ou Mykonos. Não estou falando que redes sejam ruins, mas não são iguais aqueles lugares únicos.
Um parênteses: Da forma como eu falo isso, parece até mesmo que eu estou num filme da Hallmark defendendo a pousada que vai ser comprada por uma rede de hotéis - não é isso, mas a experiência na pousada decorando a árvore de Natal é, de fato, bem diferente da experiência no Hotel de rede com decoração padrão.
A barraquinha de café em frente ao Central Park de Jaipur oferece o melhor Caramel Latte da cidade, deixando o Costa Coffee ou qualquer outra rede com inveja. O copo feito de cerâmica é “brinde”, e faz parte da experiência. Não tem cartão fidelidade nem rewards, mas deixa histórias que nos lembraremos com certeza e eu só o conheci pois passei por alí a pé, com uma amiga, voltando de uma livraria que eu a mostrei pois achei que ela pudesse gostar. O Airbnb não oferece hospedagens como os hotéis, e sim experiências - mesmo para os viajantes solo. Atividades com locais, espaços diferenciados, tudo isso para proporcionar algo novo.
Em tempos de ambientes instagramáveis feitos para se preocupar mais com a foto do que com a experiência, acho que falta repertório e mais experiências. Experiências de todos os tipos. Eu penso que a tecnologia nos tirou um pouco disso. Vejo pessoas dizendo que querem ir ao lugar X pois querem fazer uma foto igual a que viram no Instagram, ou dizendo que não precisam visitar lugar Y para conhecer uma arquitetura pois a conhecem por meio de realidade virtual. Em minha própria experiência, vi pessoas na China preferindo ir à Zara do que à Wangfujing St em Pequim - uma rua de comércio que tinha uma feirinha supertradicional. Vejo pessoas que viajam para lugares maravilhosos e só comem em redes de fast food. Vejo pessoas preferindo não lugares à identidade e tradição. Não estou falando que é errado comer em fast food ou visitar uma fast fashion, cada um tem seus desejos, mas eu vejo que falta um equilíbrio pendendo apenas para um lado da balança.
A melhor parte de uma viagem, a meu ver, é a quantidade de coisas novas que podemos experimentar e absorver. Precisamos viajar mais, até mesmo dentro do nosso país, do nosso estado e no nosso próprio bairro. Ser flanêurs em nossa cidade. Caminhar com o olhar atento para observar e ver as mudanças. Precisamos nos abrir para o novo e ampliar nosso vocabulário, nosso repertório, e aqui incluo leitura e pesquisas, para que assim possamos criar melhores experiências e lugares - até mesmo na nossa casa, afinal é um ambiente em constante construção, assim como nós também somos seres em constante construção.