A nutrição do intelecto e a fome dos sentidos
Hoje, me permiti uma edição mais pessoal. Falo sobre viagens, livros, sentidos, memórias, arte e comida. Nunca pensei que um único livro, cuja leitura eu tanto protelei, pudesse me fazer reunir todos os temas discutidos aqui de uma vez.
Recentemente, uma pessoa me aconselhou que eu tirasse um dia da semana exclusivamente para ampliar o meu repertório e me nutrir intelectualmente. Seja indo à um museu, uma galeria ou participando de atividades culturais. Aparentemente, eu demonstrei que estava em falta comigo mesma e posso dizer que achei a ideia formidável. Na mesma semana, uma pessoa comentou comigo o desejo de ir à Key West no estado da Flórida nos Estados Unidos, e eu lhe perguntei se ela desejaria conhecer o museu de Ernest Hemingway (EH), e a pessoa me perguntou quem era EH. Expliquei que tinha sido um escritor reconhecido por ter se fixado lá, em Paris e em Cuba. Aquilo foi o suficiente para reavivar inúmeras memórias minhas, coisas que parecem ficar numa caixinha guardadas em algum lugar de difícil acesso. É impossível, a meu ver, falar de EH sem mencionar Cuba ou Paris, embora, “Paris é uma festa” ainda seja considerado por alguns um livro controverso por sua publicação póstuma e edição aparentemente feita pela quarta esposa do autor acerca de memórias que envolvem outros relacionamentos amorosos, coisa que eu adoraria ler mais.
Fui a Cuba duas vezes e comento pouco sobre isso, pois nunca achei que voltaria lá. Na primeira vez que fui ao país, amei. Fui a um congresso, e com o olhar de turista, era como entrar numa máquina do tempo. Naquela época, os carros antigos ainda eram maioria nas ruas (embora não tanto quanto na década de 80), hoje dizem que são raridade. Dancei. Me senti em um filme, ou em dois, ou três. Aprendi a fazer mojitos assistindo ao pôr do sol. Comi congris, tostones, lagosta e bocadillos de helados. Tomei um drink superfaturado no bar que Compay Segundo, do Buena Vista Social Club, frequentava, mesmo preferindo ouvir Omara Portuondo (aliás, ela e a mexicana Natalia Lafourcade cantando juntas, encanta! - ouça aqui) e tendo conhecido Orishas pouco antes de viajar. Estou aqui citando cantores cubanos quando na verdade, a música que mais ouvi na ilha foi “Oye como va” de Carlos Santana. Ouvir a famosa “Guajira Guantanamera”, de Compay foi algo raro.
Quando esta viagem aconteceu em 2013, eu já havia lido “O velho e o mar” e tinha gostado bastante. Eu o li na adolescência, inspirada por algum bonitinho da época que dizia que aquele era o seu livro preferido. Ao visitar a ilha, não me contive em conhecer lugares como o hotel Ambus Mundus, onde o autor residiu, e o bar El Floridita, na calle Obispo, que tem sua estátua sentada no balcão.
Foi em 2015, quando me hospedei num lugar que havia sido uma embaixada, onde também morava um escritor canadense, que meu interesse por EH cresceu. Conversar com Robert era muito gratificante. Ele perguntava coisas acerca de passos de ballet, e me contava sobre o que estava escrevendo, a vida que tinha vivido, e os livros que leu naquela semana. Esta segunda viagem foi motivada por um estágio de pesquisa, um intercâmbio acadêmico, quando fui pesquisar acerca da preservação do patrimônio histórico na ilha. Neste ano, já presenciei menos carros históricos nas ruas, Wi-fi, embora extremamente lento, e também as notícias acerca da emblemática visita de Obama em Havana. Para referência, o desfile da Chanel na Ilha veio a acontecer apenas no ano seguinte, em 2016.
Esta segunda experiência foi muito marcante pra mim, de uma forma negativa por conta de alguns eventos (flanar por Santiago de Cuba não foi uma boa ideia em alguns momentos), mas eu nunca neguei o que ela me trouxe como enriquecimento de repertório (o cinema cubano me marcou muito nesta época), e as conversas com pessoas mais velhas que presenciaram tantas coisas lá - aquilo, de alguma forma, me ajudou a completar a viagem de um mês, quando eu dei sinais claros no 12o dia de que queria voltar pra casa.
O escritor canadense me lembrava um pouco o “velho”, personagem de “O velho e o mar”, com aqueles olhos azuis da cor do mar. Desde as conversas com Robert, tentei ler, sem êxito, “Paris é uma festa”. Em 2016, redescobri o livro revendo um filme, mas nada de evoluir com a leitura. Em 2020, com o início da pandemia, veio mais uma tentativa e ele foi, novamente, abandonado. Foi apenas em 2024, quase dez anos depois, na quinta tentativa que consegui ler o livro. E, confesso, a introdução e o prefácio tão pessoais feitos pelo filho e pelo neto do autor foram fundamentais para que eu continuasse. As vezes, é preciso ter o timing da leitura para compreendê-la melhor.
Na academia, aprendi duas coisas fundamentais que me marcam até hoje. A primeira é sempre buscar diferentes edições dos livros lidos e, se possível, ler sempre o original. A segunda é nunca nomear algo de forma retroativa. Exemplo: se um termo foi cunhado nos anos 90, eu não posso usá-lo para identificar algo nos anos 80, mesmo que faça sentido de alguma forma.
Pois bem, eu tinha esta edição de “Paris é uma festa” em mãos, em português, e tinha o audiolivro desta edição que foi restaurada e editada pelo neto do autor, Sean Hemingway, com prefácio do filho, Patrick Hemingway. O editor comenta como o livro foi constantemente escrito ao longo de muitos anos, as marcações feitas pelo autor acerca da escrita, que morreu sem deixar a obra pronta, até mesmo sem título e o que ele fez como editor, deixando a edição maior e mais próxima da edição original. Ele comenta algo curioso: EH acreditava que a Bíblia era um ótimo lugar para se procurar títulos. O título original, em inglês, “A Moveable feast” (em alusão a um banquete ou celebração que não tem data exata, embora ocorra todos os anos, um evento como a Páscoa, por exemplo), ao meu ver, dialoga muito mais com o livro do que o que temos em português: “Paris é uma festa”, e foi sugerido por um amigo do autor ao lembrar de uma conversa com ele.
O texto por si só é um deleite para os sentidos. Achei curioso que ele menciona que foi amigo da autora de “A festa de Babette” antes de ela escrever “Out of Africa” e me perguntei se esses autores conversaram sobre suas obras em algum momento. Há pessoas que escreveram posts dedicados as bebidas e comidas do livro de EH. Os dois apresentam essa relação da comida e da fome como algo além da “fome de verdade”. Fiquei aguada ao ler acerca das ostras com sabor de mar, o vinho branco gelado, constantemente trocado pelo tinto por conta do valor, e o escargot mergulhado na manteiga. Recuperei memórias de dias regados à ostras de $1, enquanto estudante de intercâmbio, e também quando experimentei escargot pela primeira vez.
Tem uma coisa muito interessante neste livro que é a constante fome do autor. Eu perdi as contas quando, ainda no começo do livro, ele já tinha comentado umas 5 vezes sobre a fome. Uma delas me marcou; nela, ele havia pulado o almoço e parou no bar onde pediu salada de batata, pão e azeite. Aquilo foi tão sensorial pra mim. O pão crocante mergulhado no azeite (com sal?) e efeito desta combinação tão simples e saborosa no paladar, pão com azeite é algo muito estimado por mim, talvez por isto tenha me chamado tanto a atenção. Minha nutricionista sempre comenta que existe fome e vontade. E quando estamos com fome, comemos “comida”, e a vontade ela é vontade de algo específico; não pode ser caracterizada como uma fome, tanto é que ela me aconselha a matar a vontade - quando possível - pois nada substitui uma coisa tão específica, como brigadeiro, por exemplo. A Paula do
costuma comentar algo parecido, para ela: a fome não é seletiva.Após ler “As formas da alegria” de Ingrid Fetell Lee, que já comentei aqui, ela menciona a “fome dos sentidos”, ou seja, “ quando insatisfeito, o desejo por sensações pode se tornar uma fome de fato”. Contrariando os conselhos acadêmicos que recebi na vida, logo pensei se o que EH nos apresentava não seria de fato uma “fome dos sentidos”. Aquilo ficou na minha cabeça por uns dias, sem saber onde retornar no audiolivro para ouvir a passagem novamente, procurei versão em português a mesma passagem, e a encontrei em um que o autor abre comentando que Paris é uma cidade que estimula a comer o tempo todo pelo cheiro, pelas vitrines… e que a melhor forma de fugir disto era andar pelos Jardins de Luxembourg e ir ao Musée de Luxembourg, depois passar pela Rua Férou até a Place Sainte-Sulpice, em direção à Rue de l’Odéon até chegar a praça, onde, segundo ele “a fome estaria contida, mas, por outro lado, todos os seus sentidos estariam aguçados”.
EH comenta ao longo do livro o quão pobre ele foi enquanto morou em Paris naquela época. Esta é, inclusive, a frase que fecha a edição em português, “quando éramos muito pobres e muito felizes”. Embora ele comente a dificuldade de se alimentar em lugares elegantes, ou de as vezes ter de negar almoçar com alguém pois não poderia pagar algum lugar específico, ele nunca deixa de mencionar como se nutria por meio das artes; ele chega até a comentar algo sobre Cézanne e a “fome” que ele tinha/nutria. Há uma outra passagem que me chamou a atenção também na qual a escritora Gertrude Stein (GS) comenta “Ou você compra roupas, ou compra quadros. (…) Isto é simples. Ninguém, a não ser que seja muito rico, pode fazer as duas coisas.” EH desejava quadros de Picasso que não poderia pagar, e ela o aconselhou que comprasse quadros de pintores menores que ele encontraria pelo caminhos; bastasse procurar que o olhar saberia indicar o que seria melhor. Me pergunto se, diante da sua situação financeira, e de uma possível casa sem ornamentos ou decoração que fosse de seu gosto, ele não sentia uma “fome dos sentidos”, como coloca Lee, e por isso procurava artes em tantos lugares.
GS é descrita como alguém que não ligava para aparência. Não, ela não ligava para moda1, mas amava escrever e admirar quadros. Uma coisa me chamou a atenção, EH comenta que, às vezes, demorava toda uma manhã para escrever um parágrafo, no entanto, GS amava tanto escrever que diariamente se dedicava ao ofício… nem que fosse uma frase2. Mesmo que fosse ruim. A frase não precisava dizer nada, apenas existir. Além de trocar a moda por quadros, GS também achava que deveríamos ler apenas livros muito bons ou muito ruins. Eu não sei a régua que ela usava, mas eu sei que pensando assim ficaria mais fácil ler os (que eu considero) guilty pleasures e os bons e abicar a leitura dos medianos que não nos agradam.
Adorei que fui ler um livro de um homem em Paris, sem saber o que esperar… mas fui pega de surpresa com as associações acerca dos sentidos e experiências, e com os escritos e conselhos de mulheres. Não acho que devemos ser como Stein, mas acredito que o exemplo que ela traz provoca algumas reflexões: (1) a nutrição por meio de atividades que amamos (2) o treino do olhar diante das possibilidades existentes no momento para nós (3) o entendimento do que deve realmente ser valorizado diante dos nossos valores e não de valores externos; quase que impostos (4) entendermos a importância de termos em casa aquilo que nos nutre e traz alegria.
Que não nos esqueçamos de nos abastecer daquilo que amamos, de educar o olhar e abandonar todos os livros que não nos atraírem.
Por hoje é isso. Até breve!
Relembrando um exemplo que já comentei aqui, nos anos 50, uma poltrona Eames custava quase que o mesmo que um vestido da Dior sob medida. Este livro se passa nos anos 1920, ou seja, é um momento de inflexão importante para a moda no geral. Nisso, eu discordo de Stein, apesar de entender que a moda, à época, poderia ser sim um investimento alto. Eu não vou me enveredar por esta seara, mas eu acredito tanto na moda como uma forma de expressão pessoal! E também acredito na qualidade das roupas que usamos, e que o consumo deve ser pensado para evitar danos, afinal, a moda é, atualmente, um dos maiores poluidores que temos no mundo - o que nos mostra como o pensamento deve evoluir de acordo com as circunstâncias.
Isso me lembrou a teoria das 10 mil horas de Malcom Gladweel em Outliers.
Te trazendo notícias de Cuba, fui em novembro com a família e o wi-fi segue lento, os carros velhos ainda são bastante abundantes embora já dividam muito espaço com carros de marcas chinesas (?) que nunca tinha visto antes! Sempre quis ler Paris é uma festa mas não o fiz por odiar a capa disponível em português, vou pesquisar a versão que tu comentaste :)
beijos
Caramba, preciso reler Paris é uma Festa. Fiz um intensivão de EH também em 2022, justo porque iria a Key West e tenho esse costume de imergir em literatura que possa me acompanhar pelo caminho (e eu ainda gosto de levar meus livros para passear, como quem leva um filho, dizendo a eles "vocês vieram daqui" - ainda que a edição seja brasileiríssima).
O que me marcou nesse livro foi a rotina de escrita e compromissos sociais. Senti um pouco de inveja, de meu trabalho não ser escrever, e de meus compromissos sociais não serem em Paris com o círculo de amigos dele :)