Mais uma sexta-feira, e eu convido você a pegar um café e seguir com a leitura desta edição. Confesso que eu fiquei uns bons minutos olhando para a tela em branco com o cursor piscando antes de começar a escrever este texto e fiquei em dúvida.
No sábado eu terminei um livro que mexeu tanto comigo a ponto de eu ter o que chamamos de “ressaca literária”. Foi apenas ontem, cinco dias após o térmico, que consegui engatar uma nova leitura. O livro em questão é “A place in the world: Finding the meaning of home” (ainda sem tradução para o português), de Frances Mayes, meio que uma continuação e ampliação das reflexões feitas em “Um ano de viagens” no qual ela narra algumas de suas viagens com o marido, Ed. E, após a leitura, fiquei pensando que tinha finalmente encontrado algumas respostas para alguns questionamentos, enquanto novas perguntas emergiam em minha cabeça. Aliás, é isto a vida não é mesmo? Uma eterna busca por respostas enquanto vamos nos deparando com novas perguntas.
Acho que o mais importante de um livro é entender (1) quem escreve e (2) para quem escreve. O texto muda completamente quando temos isso em mente. Frances Mayes é reconhecida mundialmente pelo livro “Sob o sol da Toscana”, que inspirou o filme de mesmo nome, atualmente disponível no Netflix. A Frances autora não é a Frances do filme, embora tenham coisas em comum, suas histórias divergem em alguns pontos. Frances e seu marido, Ed, viajam o mundo e já restauraram não apenas uma mas algumas casas tanto nos Estados Unidos como na Itália. A partir daí já podemos entender que ela possivelmente vai querer dividir todos os detalhes conosco. Embora belíssima a escrita, o livro pode nos cansar em alguns momentos.
Ainda na faculdade, me perguntaram “O que é o morar pra você?” e eu soube responder tranquilamente. Disse que poderia ser uma situação temporária como um intercâmbio em um país diferente, ou um lugar que eu chamasse de casa mesmo que eu não morasse mais lá em tempo integral. Na terapia, a psicóloga uma vez me perguntou onde era a minha casa e o porquê de eu ainda me referenciar a casa dos meus pais como casa, me recusando a chamar de casa o apartamento no qual eu morava à época. Ela disse que um dia eu entenderia o poder desse tipo de associação. Ainda hoje falo “lá em casa” para um apartamento no qual morei por poucos meses há uns 5 anos atrás. São perceptíveis, embora as vezes sutis, os vínculos que criamos com os lugares.
Comentei isso pois, em seu livro, Frances Mayes perguntou a alguns amigos: “Quanto tempo até você se sentir em casa em um novo lugar?” e uma das respostas que obteve de uma amiga, Els, foi “3 dias” . Para essa pessoa, que havia se mudado de casa 17 vezes ao longo da vida, 3 dias eram suficientes para etiquetar e ordenar os temperos. Ainda segundo Els, era o suficiente para não acumular nada1, o que faria a próxima mudança ainda mais fácil. Já para outra amiga, Francesca, ter uma casa que não a refletia era uma forma de se manter em movimento, uma vez que ela vivia viajando pelo mundo, e precisava apenas de um lugar para “pousar”, como diriam os antigos. Segundo Frances, a casa de Francesca dizia: “ Eu não tenho que morar aqui”. A autora então brinca que parecem que algumas pessoas são “mais evoluídas” que as outras e lembra que para alguns, viajar não é apenas viajar com o intuito de conhecer e desbravar, e sim um modo de viver.
Eu sempre li sobre a influência das viagens na produção de profissionais criativos, ou no décor da casa das pessoas.. mas essa dualidade entre o viajar e o escolher se fixar sempre foi uma curiosidade; eu queria entender não apenas o que motiva as pessoas a viajarem, mas também o que as motiva a voltar, como vivem, ou o porquê de se fixar em um lugar completamente diferente de onde saíram. Acredito que é muito importante entender o real significado de “casa” para cada um mas principalmente o nosso.
A escrita de Frances Mayes é irretocável, apesar de não ser sempre fluída pois contempla inúmeras descrições daquilo que é importante para ela mas que talvez não seja para o leitor. Eu mesma preciso fazer pausas, ou me preparar para lê-los no momento certo, com mais atenção. Eu demorei até engatar em “A place in the world” mas foi só passar as descrições do jardim que a leitura fluiu num espaço de dois dias. E aqui faço uma observação: ver um escritor escrevendo sobre jardins, é muito diferente de ler um paisagista escrevendo sobre jardins; eu amo as descrições de Burle Marx, por exemplo.
O livro de Mayes é um convite para os sentidos. Ela fala do poder da comida como cultura e como memória afetiva, da história das casas e do ato de restaurar casas antigas em culturas diferentes, além de suas inúmeras viagens. Além disso, apresenta esta dualidade inerente do ser humano de querer desbravar o desconhecido e da nostalgia pelo que lhe é familiar. Então, ao longo da jornada que embarcamos na leitura, ela nos apresenta receitas de família, histórias de casas e de viagens, conversas com amigos e frases de diferentes autores acerca do viajar (e um repertório cultural invejável!). O que mais me encanta na escrita dela é que ela faz aquilo que as pessoas consideram “errado” como, por ex, personificar a casa a ponto dela se tornar um personagem importante e reconhecer que embora não seja usual, é uma forma de conferir importância a algo de sua história.
“Que ato íntimo é convidar alguém para adentrar sua casa” (F.M.)
E uma pergunta permanece: O que é encontrar a sua casa? É um sentimento? É um local? É uma busca constante que, para alguns, nunca cessa? É uma pessoa? E o que me encanta é a pluralidade de respostas que encontramos.
Ela nos apresenta elementos que compõe o que é uma casa para diferentes pessoas. Para alguns é uma cozinha a espera de um caderno de receitas pronta para ser usada, para outros, uma casa repleta de antiguidades colecionadas ao longo de uma vida… Então, ela nos chama a atenção para algo interessante: existe o viajante e a pessoa que não preza pela aventura do viajar, que gosta de ficar em casa (“Homebody”); mas isso não significa que o viajante também não goste de ter uma casa para a qual deseja voltar ou permanecer por longos períodos, mesmo que de forma temporária. Então ela conta como encontrou seu lar na Toscana.
“O que você come é quem você foi e é. Quando você cozinha a comida que mais ama, você chega em casa.” (F.M.)
O meu encantamento em relação à esta obra de Mayes é como ela foge das referências comuns de viagem. Enquanto muitos autores-viajantes vão mencionar o flâneur e fazer comentários acerca de como Mrs Dalloway, personagem de Virginia Woolf, flanava por Londres, ela escolhe falar sobre “um quarto todo seu” (em referência à outra obra de Woolf) na casa na qual construiu e que a permite contar sobre tantas viagens que fez. Ela não vai falar do flâneur de Baudelaire, nem citar o Walter Benjamin, isso nós vamos encontrar em autoras como a Lauren Elkin em “Flanêuse” ou a Ajiri Aki em “Joie”, Mayes vai mais longe. Ela busca referências em latim, em grego, na literatura, na poesia. Ela quer que pensemos em como somos compostos por fragmentos das viagens que fazemos, das comidas que comemos, das casas que vivemos, das conversas que tivemos e das memórias que colecionamos ao longo de uma vida.
![American Girl in Italy Ruth Orkin 1951 American Girl in Italy Ruth Orkin 1951](https://substackcdn.com/image/fetch/w_1456,c_limit,f_auto,q_auto:good,fl_progressive:steep/https%3A%2F%2Fsubstack-post-media.s3.amazonaws.com%2Fpublic%2Fimages%2F9242813b-56d0-40d3-931b-0d390561e71d_465x308.jpeg)
Seu objetivo não é fazer as pessoas andarem sem rumo por aí, e sim, que elas reflitam sobre como se sentem quando estão conversando sob as estrelas em um lugar diferente ou tomando vinho com os amigos na varanda. Para a autora, o que nos move é, de alguma forma, o que nos molda como pessoas. Ela comenta como alguns lugares estão diretamente ligados à nossa identidade. Ela escreve “Place is fate” (lugar é destino) e repete algumas vezes ao longo do texto “Where you are is who you are” (onde você está é quem você é) - embora eu ainda tenha algumas dúvidas quanto a isso e me pego fazendo novos questionamentos: será mesmo desta forma?
Para Mayes, a escolha do destino do viajante está sempre ligada a algo que ele deseja para si. Tendo lido algumas obras de mulheres viajantes, o livro de Mayes me faz refletir como alguns destinos são semelhantes entre elas: Nova York, Londres, Veneza, Paris, Tóquio… Penso então na Veneza da colecionadora de arte Peggy Guggenheim, a Nova York da escritora Elizabeth Bishop, o oriente da viajante Freya Stark, e o mundo todo da jornalista Nellie Bly e tantas outras mulheres… e me pergunto: o que na identidade delas as une, para além da curiosidade?
“Joia não é dinheiro. É romance, patrimônio, um conceito interno de beleza” (F.M.)
Mayes revela também a profunda conexão de alguns viajantes com os mesmos lugares no melhor estilo “eu poderia viver aqui”, e também com patrimônio histórico e antiguidades, mas mais ainda ela propõe a visualização do que nós consideramos o nosso próprio patrimônio histórico, tais como pequenos objetos, ou uma joia de família, por exemplo, e que eles deveriam ser mais usados. Mayes vai propor o entendimento da arquitetura como um livro e cada cômodo como um capítulo, ao mesmo tempo que seu livro pode ser entendido como uma planta e cada capítulo um cômodo, com isso ela mostra como uma casa que pode ser lida como lemos um livro; cada capítulo contribuindo para a leitura o todo, e que vai de encontro com as aulas de restauro na qual minha professora falou por repetidas vezes: “a edificação é um texto arquitetônico a ser lido”. E o mais importante: ela nos mostra que construir um lar pode ser como preparar uma viagem, ao lermos sobre a história da edificação escolhida, sua construção e a história dos itens ali dispostos. Ela ainda nos lembra que grande parte desta construção do que consideramos nossa casa é o ato de imaginá-la.
Que a gente possa continuar sonhando com a casa, as viagens e comendo aquilo que nos dá alegria.
Até breve!
Alguns links que valem a pena: Ajiri Aki, criadora de Madame de la Maison e autora do livro Joie, vai nos lembrar que todo dia é uma ocasião especial para se usar a porcelana elegante. Infelizmente, a mãe dela ficou esperando uma ocasião especial e não teve a chance de usar a dela. Estou lendo o livro dela Joie, de uma delicadeza! Gosta de antiguidades ou peças vintages? Fiz um breve post sobre comprar mobiliários e itens de decoração em leilões.
Aliás, este é um tema que vamos tratar em breve - organização de acordo com diferentes autores para você encontrar o que faz mais sentido para a sua vida e
Fiquei curiosíssima pelo livro! Tenho muito essa sensação de que alguns lugares "evocam" partes minhas que não se revelam onde eu vivo o ano todo. Vivo essa sensação de que preciso a cada período levar minha alma para se sentir em casa em lugares que não são aqui - e confesso não saber se é o lugar ou o meu estado interno que alteram essa sensação...
Eu que sempre prego o "morar" e o uso como slogan (casas para morar),me peguei pensando se consigo por em palavras o que é o morar. Adorei o texto e já agradeço a indicação do livro! Vou ler! 🧡