Uma pequena crônica sobre estar em casa
Estou há uns dias na casa em que cresci. O apartamento cuja sala comporta minha casa atual em termos de área, ainda abriga o quarto que habitei até os 17 anos, antes de ir para a faculdade. Assim como nas casas que vemos nos filmes, o quarto, intocado, parece uma viagem ao tempo. Não foi redecorado, mantém um roda meio, bem clássico, três tonalidades de amarelo e um singelo lustre com vidrinhos que fazem uma sombra diferente no teto.
A paisagem lá fora mudou, aqui dentro não. Os pôsteres de filmes continuam na parte interna das portas do guarda-roupas, há livros e cds. Juro que consigo ouvir John Mayer assim que entro no cômodo. A lembrança é tão forte que automaticamente me vejo escolhendo as mesmas músicas que ouvia estudando para o vestibular. Atrás da porta, na parede, encontro o poema “Dare to“ de Meiji Stewart - uma experimentação artística.
Minha cama, modelo Biedermeier, a.k.a. sleigh1, faz jus à sua descrição: “Traditional wooden sleigh beds bring a touch of coziness, hospitality, and warmth to the room due to their rustic materials”. Além disso, há nela um elemento especial: o de acabar com insônias e me fazer dormir 8h sem interrupções e ter os sonhos mais engraçados.
O cheiro ainda é o mesmo: lençóis frescos e recém-lavados, terra molhada e brisa do rio vizinho. Não há sensação de tempo seco, no vale no qual estou há uma brisa suave o tempo todo e um vento que parece assobiar. No jardim histórico em frente, vejo preguiças e tucanos enquanto ouço histórias de pica-paus que vem até a varanda em busca de frutinhas. No armário posso encontrar frascos de perfumes que tem Baby no nome, além de outros que me remetem à época na qual eu ainda morava aqui.
Não pareço me interessar por nada que as pessoas considerem edificante nesses dias de calmaria. Trabalho, claro, mas também ouço podcast de séries, música dos anos 2000 e sei que na tarde de sábado comerei pipoca vendo um filme que eu provavelmente já vi ou algum que já deveria ter visto. Ligo a tv durante a semana e a novela que está passando é aquela de 2006, que vi enquanto ainda morava aqui. Torço com alguma esperança para que Brothers and Sisters, a série cuja maratona eu via todo domingo ainda esteja passando em algum lugar, mas isso não acontece. Sento no chão, ando descalço, garimpo vestidos no armário de mamãe, damos vida nova à roupas que estão novamente em voga.
Recebo o convite de casamento de uma prima e logo penso que pode ser a possibilidade de usar o vestido que uma avó (emprestada) me deu. O vestido em tom de verde menta, feito em 1940 em Paris, nunca foi usado por mim e espera ansioso uma oportunidade. Esqueço que da última vez que estive aqui o levei comigo.
Apesar de parecer que estou numa viagem no tempo, eu escrevo artigos em inglês, eu respondo e-mails de orçamentos, eu recebo convites para visitar bebês de amigas e convites para casamentos. Entro em lojas e comento que tenho roupas de lá que têm mais de 10 anos. Tudo é diferente. Eu tenho 30 e novos hábitos. Não gosto de amarelo, tenho minhas novas habilidades e tradições. E é claro que eu me desafiei e fiz uma galette das rois no dia 06 de Janeiro para encerrar as comemorações natalinas, hábito que adquiri de amigos franceses quando morei fora. Presente e passado se encontram nesse local.
Estudei por horas alguns tópicos que sempre comento com clientes, como a necessidade de declutter, por exemplo, desfazer de tudo que não tem mais espaço em nossas vidas. Não há outro lugar no mundo no qual eu me sinta mais focada, atenta ou criativa - culpo o amarelo das paredes por isso (ok.. talvez na Locker room eu também me sinta assim). E talvez, seja aqui o lugar no qual eu consiga ter de novo a confiança e os sonhos que tinha quando mais nova. Eu acredito nos poderes dos lugares, das memórias e das sensações.
Quis escrever este post desta forma pois sei que muitas vezes alguns lugares e suas memórias tem o poder de trazer boas lembranças para nós. E foi muito bom poder sentir de novo alguns sentimentos, relembrar memórias e sentir até cheirinhos já esquecidos (e não ter insônia também, confesso). Estou fazendo meu próprio declutter e muitos me dizem que posso me arrepender de dar todas as Barbies que estão esquecidas no maleiro do armário há 17 anos. Encontro algumas caprichos e me perco lendo as colunas de Antônio Prata. “Estive pensando” muita coisa mudou, e mesmo assim alguns objetos são mantidos com o objetivo de reviver memórias. Os sentidos estão atentos. O blazer de linho que minha avó me deu estava perdido no armário, o café está sendo passando, tem empadão no forno. Peraí, acho que ouvi “Your body is a wonderland” tocando. Poxa, é aquela versão acústica. Preciso ir.
Modelo de cama com cabeceira e pés que fazem uma ligeira curva. Recebem esse nome pela semelhança com um trenó. Foi um modelo de cama considerado imperial e data do século 19.