Em minha primeira viagem internacional conheci uma senhora, que na época tinha 82 anos. Ela estava acompanhada do neto e da filha, e disse que nunca deixou de viajar. Mesmo com a idade avançada nos acompanhou no mesmo ritmo, de Londres a Capri, contando muitas histórias de viagens passadas, revivendo experiências e memórias.
Outra vez, em um barco no Mediterrâneo, conheci uma outra senhora que havia descoberto o viajar mais tarde. Eu havia saído do mar quente e passava muito frio dado os ventos do local. Ela colocou um casaco quebra vento sobre meus ombros e disse que ia me ajudar. Aquele gesto, tão amoroso, me marcou. Era óbvio o meu despreparo para aquela situação. Ela, que deveria ter uns 70 anos, começou a conversar comigo e me disse que mesmo sozinha, fazia questão de continuar viajando. Comentou também que nós nunca estamos preparados para algumas coisas na vida, mas sempre é tempo de fazer algo novo.
Neste final de semana, após ler “A gente mira no amor e acerta na solidão” da psicanalista Ana Suy, comecei a ler “Pra vida toda valer a pena viver: Pequeno manual para envelhecer com alegria”, da aclamada geriatra Ana Claudia Quintana Arantes. Não lembro se foi uma amiga ou minha terapeuta quem recomendou o livro em seu Instagram, mas achei uma boa pedida.
No começo do livro, a geriatra compara o envelhecer a uma viagem ao deserto do Saara na qual temos anos para nós preparamos antes de que ela aconteça e, mesmo assim, muitos de nós chegam ao destino sem o devido preparo. Nem todo mundo consegue ser como a senhora da minha primeira viagem, ou a viajante solo que encontrei no barco em Santorini. A minha própria avó, por exemplo, tem hoje mais de 8o anos e apresenta restrições que a impedem de fazer várias coisas. Segundo a autora, cada um de nós terá uma experiência diferente na velhice. O que Arantes aborda no livro é a melhor forma de nos preparamos para “fazer esta viagem” quando chegar a hora.
Eu gosto de falar sobre assuntos importantes fazendo alusões a histórias e livros, música e viagens pois acho que é uma forma de abordagem que joga luz em assuntos importantes e nos toca por meio da experiência de outras pessoas. Nunca foi minha pretensão aqui falar de forma técnica ou impositiva, isso eu deixo para as normativas.
Meu objetivo hoje é falarmos um pouco sobre a forma que preparamos nossa casa e os ambientes para eventuais viagens ao Saara, ou até mesmo para melhor nos receber se estivermos, de alguma forma, com limitações de locomoção por exemplo.
Citei o livro de Ana Arantes pois uma passagem me chamou a atenção:
“Há alguns anos, reformei meu apartamento e, já atenta à chegada dos 50 anos, pedi ao arquiteto responsável que fizesse um boxe amplo, onde eu pudesse entrar com uma cadeira de rodas; a ideia era adaptar a casa à minha velhice que um dia chegaria. O arquiteto protestou. “Pare com essas ideias negativas, onde já se viu falar em cadeira de rodas?” É o mesmo pensamento mágico que norteou os imigrantes, reproduzido no discurso de um arquiteto do século XXI. Não arredei da minha decisão. Ironicamente, algum tempo depois quebrei o pé, precisei passar por uma cirurgia e, por sorte, o boxe era grande o suficiente para acomodar a cadeira de rodas que tive que usar.”
Depois, a autora retoma o assunto da seguinte forma:
“A resposta do arquiteto a meu pequeno, quase singelo, pedido doméstico revela o traço tão nosso, tão brasileiro, de fugir da morte e, antes dela, da fragilidade, da dependência, do envelhecimento. Aqueles imigrantes não permitiam que os pensamentos sobre o morrer invadissem seu cotidiano, justo naquele momento em que tinham recuperado a esperança. Penso que está aí, nas raízes da nossa brasilidade, o que nos tolhe de conversar sobre a morte.”
Embora o foco de seu livro seja a velhice, ela aborda uma situação na qual precisou de uma cadeira de rodas ao quebrar o pé. Quantas vezes não ouvi de algumas pessoas que não precisavam seguir a norma de acessibilidade pois nunca teriam um cadeirante ocupando aquele espaço? Esses dias em uma loja de departamentos vi 3 cadeirantes. As pessoas esquecem que, infelizmente, todos estamos sujeitos a sofrer algo que nos imponha uma limitação - seja um pé quebrado até mesmo um pequeno acidente. Não é apenas da morte que as pessoas fogem, o que me leva a acreditar que exista talvez um sentimento muito positivo de que em nenhum momento estaremos numa posição na qual precisaremos de espaços que nos acolham (ou alguém da nossa família) de forma diferente do que estamos habituados.
Eu cresci numa casa acessível. Portas largas, rampa no lugar de escada, na qual eu ocasionalmente utilizava como rampa boliche quando pequena. Cômodos amplos, algo diferente de tudo que eu encontrei quando cresci. Talvez essa experiência, ainda na infância, tenha me conscientizado da importância de termos uma casa que acolha pessoas com mobilidade reduzidas.
No meu prédio tem uma senhorinha que não consegue descer as escadas, ela sempre usa a rampa, sendo guiada pelo seu cachorrinho. A rampa ao lado da escada não é nada inclusiva, embora cumpra seu papel de acessível.
Vale lembrar que acessibilidade não implica em inclusão. Para fazer um projeto inclusivo é preciso estar atento às diretrizes de design universal. Um exemplo? Uma rampa ao lado da escada é acessível, mas quando uma rampa é a única possibilidade de acesso, ela é inclusiva. Inclusão é saber que o espaço foi projetado pensando em todos, e não apenas adaptado para uma determinada situação.
Andadores, bengalas e muletas podem não se dar bem com ambientes com tapetes ou superfícies lisas demais. A mesma atenção deve ocorrer com a altura dos mobiliários. Uma poltrona mais baixa - a Barcelona, por exemplo - pode ser péssima em um ambiente para pessoas com algumas restrições de movimento. Um olhar atento pode trazer muito mais conforto e segurança ao usuário daquele ambiente. Devemos sempre pensar em quem aquele espaço vai acolher.
Conheço uma senhora que parou de frequentar a casa da neta pois a cama que ela usava ficou baixa demais para que ela dormisse nela. Sei que em sua casa não deve ter tapetes pois, ocasionalmente, ela sente a necessidade de usar uma pequena bengala de apoio. Seu pequeno orquidário não está mais tão bonito como era, o que demonstra que ela não tem conseguido mantê-lo com a mesma vitalidade que o mantinha antes. Esse olhar atento não deve ser destinado apenas à consultórios, lojas e escolas1… ele deve se voltar para nossa própria casa.
O que quero propor com este post? A maioria de nós envelhecerá. Mas, antes de nós, nossos pais, nossos avós, passarão por este processo. Devemos nos atentar aos ambientes que estas pessoas frequentam. Devemos ter cuidado com eles. Embora cada um de nós vá se deparar com sua passagem com o destino ao Saara algum dia, podemos ser aquele amigo legal que dá dicas sobre o que levar na mala, ou a melhor estadia possível. Não é sempre bom poder contar com esse olhar de amigos que olham com tanto carinho para nós e a nossa jornada?
Fiz uma consultoria para a escolha de revestimentos de uma casa recentemente. O arquiteto que projetou a casa não faz interiores e os clientes pediram que eu levasse a linguagem do projeto do apartamento que eu havia feito para eles para essa nova morada. No primeiro pavimento da casa a preocupação da filha era em ter uma suíte para receber os pais na velhice. O arquiteto da obra havia acatado seu pedido fazendo um espaço amplo que os acolhesse nesse momento. A cliente ainda pensou mais longe. Disse que aquela casa teria prazo estabelecido de morada pois, apesar de acolher os pais, ela se já se preocupava com a sua própria velhice e sabia que esta não seria vivida ali e sim num bairro mais central próximo de todas as conveniências possíveis, buscando uma possível autonomia.
Ana Arantes fala da importância da conscientização de que somos seres interdependentes, ou seja, dependemos uns dos outros para nossa sobrevivência, o que por sua vez Ana Suy também comenta em eu livro, já nascemos dependentes. Preparar esta viagem ou ajudar alguém nesta tarefa não é ser pessimista, mas saber que estamos precavidos se algo acontecer. É como ter o número do seguro-saúde de viagem, uma segurança a mais.
Se você é da área da saúde ou tem alguma instituição ou espaço que recebe o público em geral, você tem o dever de seguir a NBR 9050/2020, a normativa acerca de acessibilidade.
Ótima a analogia de "envelhecer como uma viagem ao deserto do Saara". Acompanho atualmente minha mãe que não se preparou para essa viagem, com quase 90 anos e lucida, sofre a mais de 15 anos porque só enxerga tempestades de areia cegando tudo de bom que aconteceu e acontece e sua vida.