Nós sabemos que o que é óbvio para um nem sempre é óbvio para o outro. Esses dias, uma discussão que rolou aqui em casa foi acerca do valor das coisas e como cada pessoa tem valores diferentes e consequentemente, vai valorizar coisas diferentes. Uma amiga tem uma expressão interessante para se referir à coisas cujo valor é dado apenas para ela: “Patrimônio Sentimental”. Enquanto conversávamos esses dias, ela comentou sobre itens que ela guarda e que, embora nunca os use, ela ainda os guarda pois eles a lembram de momentos especiais que viveu. Como um jeans que usou quando chegou no país onde morou fora pela primeira vez e assim por diante.
Esses dias aconteceu a venda de uma série de cartas de Bob Dylan para sua namoradinha da escola. Elas estavam impecavelmente guardadas, ainda em seus envelopes originais. O lote foi comprado pela Livraria Lelo, em Portugal (aquela que inspirou Harry Potter). Uma parte do artigo me chamou a atenção: aparentemente, o cantor não teria tentado comprar suas próprias cartas. Apesar da livraria ter a posse, todo o seu conteúdo, considerado uma série de autógrafos do cantor e que incluí a primeira assinatura como Bob Dylan, é de propriedade intelectual do cantor que detém os direitos autorais de publicação. Poderia fazer uma news só sobre isso um dia, especialmente em arquitetura - é um tema que precisa ser discutido.
No mês de novembro, o leilão para a venda de itens da escritora Joan Didion causou furor com seus óculos de sol, sendo vendidos por mais de 20 mil dólares, assim como cadernos em branco e obras de arte. O leilão de sua coleção foi feito pela Stair Galleries, uma casa de leilão localizada em New York. Eu não sei você, mas leilões em geral me fascinam. Eu tenho uma curiosidade para ver o valor que as pessoas atribuem à suas aquisições, especialmente quando são itens de arte.
Embora os lucros sejam destinados à caridade1 , o valor das vendas surpreendeu muitas pessoas. Este o artigo do The Guardian questiona: O Que Joan Diddion Significa pra você? Eu acredito que ela tenha inúmeros significados e ocupe um espaço especial na memória de várias pessoas. Mas o que justifica pagar 9 mil dólares por um grupo de 13 cadernetas em branco? Neste artigo do The Guardian, a autora questiona se parte desse valores faz parte de um “fenômeno recente da busca por parecer culto e erudito”.
Eu acho interessante as dinâmicas dos leilões. Eu mesma adoraria adquirir algumas peças.. como o Cartier Tank feito em 1962 (modelo que não existe mais) com caixa quadrada em ouro e pulseira de couro, dado à Jackie O pelo príncipe Stàs Raziwill e que dizem que teria sido inclusive dados à sua nora Carolyn Bessette-Kennedy ( o que eu acho um pouco estranho já que foi vendido como propriedade da família Radziwill). E este móbile de Calder, do final dos ano 1940, cujo leilão foi fundamental para que conseguisse encaixar várias peças do meu quebra-cabeça da pesquisa do doutorado. O móbile em questão havia sido dado pelo próprio Calder à Lota de Macedo Soares, sendo posteriormente vendido ao Nelson Rockefeller. Lota e Calder foram amigos pessoais, então acho que este móbile e toda sua história são bem interessantes.
E acredito que a gente dá valor à algumas coisas pelo que elas significam para nós para além de seu valor de mercado e o nosso desejo é de que aquilo atue como guardião ou espírito desta memória, por isso comentei sobre o que minha amiga Cibelle chama de “patrimônio sentimental”.
Quem me conhece sabe que eu sou uma pessoa que gosta e se interesse por história da moda e maquiagem, apesar de não ser considerada uma fashionista (sou bem básica e tradicional neste sentido). Recentemente, enquanto procurava uns itens de maquiagem, me deparei com uma compra da maquiadora Lisa Eldridge, cujo trabalho eu acompanho há muitos anos. Eldridge comprou a case de batom de Audrey Hepburn num leilão da Christie’s por 56.250,00 libras. Neste vídeo ela conta sobre a emoção da compra da case feita pela Cartier especialmente para a atriz. O item, feito na década de 1950, é em ouro 18k e conta uma safira em seu fechamento. Ela não conta no vídeo o valor que pagou, mas o valor está descrito no catálogo da venda, veja-o aqui. A maquiadora comenta a surpresa que foi descobrir o batom que estava dentro da case e jurou não comentar qual a marca ou cor, apenas disse que não era a marca com R. Explico: por muito tempo acreditou-se que o batom de Audrey em Bonequinha de Luxo era a cor Pink in the afternoon da Revlon, mas sabe-se que, possivelmente, era a cor Eccentric de Estée Lauder, já que a atriz chegou a mencionar esta cor algumas vezes.

Lisa faz pesquisas incríveis para compor os ítens de sua linha de beleza. Diz inclusive que um deles foi inspirado no que acredita-se ser o elemento que Helena de Tróia usava como maquiagem. Ela pegou a cor do batom e a reproduziu de uma forma contemporânea, usando toda tecnologia possível. Acredita-se que foi a partir deste que o batom Go Lightly (em alusão ao sobrenome da personagem de Audrey em Bonequinha de Luxo) surgiu. Ou seja, uma versão contemporânea e atualizada do batom da atriz. Eu achei isso fantástico. É uma forma de perpetuar aquele símbolo atualizando-o com as tecnologias atuais disponíveis.
Eu acho que nunca comentei isso por aqui, mas eu redijo memoriais de intervenção em Patrimônio Histórico, um documento necessário para a aprovação de um projeto que propõe uma intervenção em um arquitetura que teve seu valor reconhecido e que foi tombada como patrimônio. No campo da arquitetura e do urbanismo, mais especificamente do patrimônio histórico, existe uma expressão em latim chamada: “Genius Loci” (algo como Espírito do Lugar, em português) - que designa o valor patrimonial de um espaço para além do material, seus valores intangíveis como sua memória, por exemplo.
A carta de Quebéc, outro documento que disserta acerca de patrimônio, traz uma definição interessante: “Como o espírito do lugar é um processo em permanente reconstrução, que corresponde à necessidade por mudança e continuação das comunidades, nós afirmamos que pode variar ao longo do tempo e de uma cultura para outra, em conformidade com suas práticas de memória, e que um lugar pode ter vários espíritos e pode ser compartilhado por grupos diferentes”. O valor de um lugar pode ser diferente para diferentes pessoas, e, ao mesmo tempo, não ser representado fisicamente.
Uma outra declaração patrimonial comenta que para um patrimônio histórico precisa se atualizar para se manter relevante. Sempre ao redigir um memorial, eu tenho que relembrar o que atribuiu valor àquela edificação, como ela se mantêm relevante e justificar a intervenção mostrando o valor que ela vai agregar e como isso vai refletir naquela obra; naquele espaço.
Como eu mostrei aqui, muitas vezes, o valor patrimonial é algo que reflete valores de muitas pessoas e pode também não ser material. Por isso quis trazer exemplos de itens de famosos que foram leiloados e também itens pessoas que só nós reconhecemos seu valor para comentar este tema. Acho que precisamos fazer o exercício de pensar mais nas coisas que valorizamos e o porquê valorizamos aquele item, aquele momento, aquela pessoa. Normalmente, essas coisas, se transformam. Sejam momentos em memórias, sentimentos em palavras, como no caso de Didion, ou o patrimônio histórico que ao receber uma intervenção vai receber mais usuários que vão criar novas memórias ali, conferindo e ampliando seu significado.
Essas conexões fazem sentindo pra mim, pois procuro entender e exemplificar diferentes assuntos por meio de uma aproximação entre eles. As coisas têm o valor e a importância que damos à elas. Seja o batom de uma pessoa, o óculos de sol da autora preferida, a composição de um autor ou o patrimônio histórico de uma cidade. Por isso é importante entender que se algo é desvalorizado é porquê não recebe atenção ou a importância suficiente. Alguns itens devem sim ser preservados intactos por serem únicos mas outros podem ser ressignificados para alcançar mais pessoas e serem novamente valorizados.
Links de Novembro:
Para discutir: a Thread “Money talks, but wealth whispers” deu o que falar no twitter. É um tópico que eu já tinha visto pessoas da área de Marketing e da decoração comentando. O que você acha? E o que podemos dizer em relação à cultura e expressão pessoal neste sentido?
Para ver e ler: O post da Designer de Joias Ana Khouri sobre as cópias de seu trabalho.
Para sentir na pele: Tecnologia e beleza se encontram: Feito em parceria com a escola de medicina da Universidade de Harvard, o Sérum Premier Cru me surpreendeu.
Para experimentar: O cheiro de festas se espalha pela casa com esta receita fácil de biscoito de natal da BBC, em inglês. O sabor? Maravilhoso! A receita da Rita Lobo é tão saborosa quanto, mas dá um pouco mais de trabalho.
O que tenho ouvido por aqui: Sault - descobri por meio das retrospectivas do Spotify postadas no instagram. O álbum Voyager de Max Richter, conheci ao ouvir a The Nature of Daylight em um vídeo do casamento da influencer Alex Riviére, cujo bom gosto e elegância eu muito admiro e muito. Vale ver as fotos (quase um editorial) de seu casamento em Veneza.
Impossível falar em Veneza sem pensar em Peggy Guggenheim. O @maniademuseu fez um post breve mas muito bacana sobre ela. A gente precisa falar mais sobre mulheres e museus no período moderno. Tanto no exterior quanto aqui mesmo no Brasil.
PS: A news de hoje ficou sendo escrita (e reescrita) por quase um mês. Nestes dias, recebi uma carta da minha avó que ela nunca havia me entregado antes e, para mim, elas valem muito muito mais do que qualquer carta do Bob Dylan. Anterior à esta newsletter, ainda em Outubro, comecei a trabalhar em uma edição sobre o Tempo. Apesar de ser uma arquiteta, é possível perceber que eu não me proponho a exibir meu trabalho apenas por meio de imagens, mas também a conversar e refletir sobre ele e seu impacto em nossas vidas.
Os lucros deste leilão serão (ou já foram) destinados para a Universidade de Columbia, mais especificamente para pesquisa e cuidados de pacientes com Parkinson e outros doenças motoras. Se você tiver interesse em saber mais sobre o que foi leiloado - o catálogo do leilão pode ser acessado aqui. Eu confesso que o que eu mais teria interesse em comprar seria o lote 20, a obra de Richard Serra e algum dos lotes que tivesse uma primeira edição de seus livros.