Um convite para os sentidos
Já comentamos aqui acerca da influência de outros olhares na construção do nosso olhar e como ao diálogos sobre temas “difíceis” como gostos podem resultar em conversas edificantes. Às vezes, esses assuntos se unem e convergem em novos debates e é interessante retomá-los.
Eu acredito em algumas coisas (1) somos constantemente influenciados por quem nos cerca, (2) quanto mais eu sei, menos eu sei, e assim menor eu fico perante a vastidão do mundo e (3) é possível mudar de ideia ao longo da vida; nada é estático ou imutável.
Eu poderia fazer um texto de “inspirações” esta semana, com a quantidade de coisas que consumi nos últimos dias influenciada por pessoas. Coisas que fizeram com que eu mudasse de ideia acerca de uma tema ou um objeto; coisas que abriram meu olhar, e textos que expandiram meu conhecimento a ponto de questionar tantas coisas
Um exemplo simples: eu não costumo ver filmes sci-fi, mas no domingo, vi “Interstellar” (2014) por indicação de uma amiga. Um pouco atrasada, eu sei… uma década atrasada mas, mesmo sabendo do final e lido tantos spoilers e gostando tanto da trilha sonora, fui (ou me permiti ser) inundada por aquele filme. E este filme me fez repensar “O Intruso” (Foe, 2023), um filme que eu comentei aqui que tinha odiado, mas ver “Interstellar” me questionei: será que eu veria Foe com outros olhos agora? Será que eu gostaria mais ou menos ainda? O que os cenários/narrativas tem em comum? E com isso, também me fez querer rever outro filme, um filme que me emocionou muito quando vi no cinema, “A Chegada” (The Arrival, 2016). Filmes sei-fi me geram incômodos sensoriais; a luz extremamente branca das naves, as tempestades de areia...
Falando em arquitetura e bem-estar, na edição 51 da revista Kinfolk, um entrevistadora, Emma Moore, perguntou ao arquiteto minimalista John Pawson “Falamos cada vez mais sobre a arquitetura como uma estrutura para o bem-estar, o que é atualmente interpretado como mais textura e cor. Você é afetado por tais movimentos?” Ele respondeu: “(…) você sabe, as pessoas entram [na casa de campo] e dizem “Ooooo!” Quero dizer, esse é o teste decisivo, não é? As pessoas se sentem bem. Ou na igreja, eles se sentem mais próximos de Deus. No restaurante, eles sentem fome. Esses espaços são para as pessoas viverem, trabalharem ou orarem, e foram projetados para isso. Você não precisa de cor artificial”. Adorei isso e como isso reforça o pensamento de que cores são escolhas pessoais de acordo com o universo e a experiência de cada um.
A mesa como espaço do encontro e mais. Durante a semana, li “A festa de Babette” , que peguei emprestado no BibliOn. Sempre tive uma curiosidade em ver o filme, especialmente quando Marina, do
e do , conversou comigo sobre ele. Então, Maria Cláudia, mencionou que o livro era uma ótima leitura na época da Páscoa - influenciada por este comentário, resolvi lê-lo e qual não foi a minha surpresa ao ler este conto… O livro é tão rico em detalhes e cores e até mesmo a ausência delas, que é impossível não imaginar um filme passando em sua cabeça ao ler as páginas. Mesmo para quem tem afantasia, o livro oferece um tipo de experimentação sensorial que faz com o leitor perceba pequenos detalhes da história, não tanto como os cheiros descritos em “O Perfume”1, mas de uma forma delicada e discreta. Eu queria ter estado naquele jantar.Nem todas minhas amigas lêem a news e eu entendo. Algumas não tem interesse pelos temas que coloco aqui, e tudo bem. Mas eu sou o tipo de amiga que fala: se você lançar um livro, eu serei a primeira na fila na noite de autógrafos, pois eu só sei ser amiga assim. E eu achei muito bonito a forma como Fran Lebowitz coloca para Julia Louis-Dreyfus, ao ser entrevistada por ela em seu podcast “Wiser than Me”, que o melhor papel que ela desempenha na vida é o de ser amiga; uma amiga que admira, que é leal... Além disso, ela comenta sua amizade com Toni Morrison, autora de o “Olho mais Azul”, de uma forma tão bonita, que me emocionou. Aliás, ontem, enquanto procurava por um livro na livraria, encontrei na estante a belíssima edição “Vozes Negras: A Arte e o Ofício da Escrita” e fiquei encantada! Coincidentemente, ao chegar em casa, me deparei com uma citação de Maya Angelou que coloco abaixo e que me lembrou a festa de Babette que nos lembra o quanto precisamos da arte em nossas vidas e mais… (não vou continuar para não dar spoilers):
“Por causa das rotinas que seguimos, muitas vezes esquecemos que a vida é uma aventura contínua. . . A vida é aventura pura, e quanto mais cedo nos dermos conta disso, tão logo seremos capazes de encarar a vida como arte: de trazer todas as nossas energias para cada encontro, de permanecer flexíveis o suficiente para perceber e admitir quando o que esperávamos que acontecesse não aconteceu. . Precisamos lembrar que somos criativos e podemos inventar novos cenários com a frequência necessária.”2
Maya Angelou
Devo destacar que ainda nesta semana, mergulhei no universo de Susan Sontag influenciada por uma amiga maravilhosa, Ruth. E devo dizer: que nó ela deu na minha cabeça ao me indicar a leitura de “Notas sobre Camp”. Primeiro, eu gostei de ler como Sontag coloca John Ruskin como “campy” já que ele falseou o histórico em algumas edificações que restaurou… fui correndo compartilhar com o grupo das aulas de restauro que fiz ano passado.. mas também, fiquei curiosa como ela contempla o título à Gaudí por querer propor um trabalho inalcançável de gerações. As vezes, é este tipo de leitura, que nos confunde e que nos transforma. O que eu mais gostei é a forma como ela coloca o gosto e a forma como ela fala do desenvolvimento de um gosto desigual:
“A maioria das pessoas considera a sensibilidade ou o gosto no âmbito de preferências totalmente subjetivas, aquelas misteriosas atrações, em grande parte sensuais, que não foram sujeitadas pela soberania da razão. Elas permitem que considerações de gosto influam em suas reações a pessoas e a obras de arte. Mas esta atitude é ingênua. Ou pior. Defender a faculdade do gosto eqüivale a defender a si mesmo. Pois o gosto rege toda reação humana livre – contraposta à reação mecânica.
Nada é mais decisivo. Existe gosto nas pessoas, gosto visual, gosto na emoção – e há gosto nos atos, gosto na moralidade. A inteligência também, em realidade, é uma espécie de gosto: gosto pelas idéias. (Um fato que é preciso reconhecer é que o gosto tende a se desenvolver de maneira muito desigual. É raro que a mesma pessoa tenha bom gosto visual e também bom gosto em termos de pessoas e em termos de idéias.)”
(Susan Sontag em Notas sobre o Camp, 1964)
Entendi que tudo bem ter um péssimo gosto para filmes e bom gosto para design rs. Então, como sempre, eu não soube parar. Senti muito não ter lido Sontag na Graduação, mas agradeço muito ter uma amiga que me inseriu nestas leituras. De “Notas sobre o Camp”, decidi ler outro ensaio, chamado “Contra a interpretação”, que gostei mais do que o primeiro. E então comecei “Sobre a Fotografia”, que seu biógrafo, Benjamin Moser indica como o livro pelo qual se deve começar a ler seu trabalho. Como a editora do livro coloca, são “ensaios pioneiros sobre a relação entre o real, a representação e o poder da imagem na sociedade contemporânea” - estou curiosa, embora ainda muito no começo da leitura para esboçar qualquer tipo de comentário, mas o que eu li, eu gostei. Quando ela fala que fotos “brincam com a escala do mundo” eu me lembro de Ruskin e seu comentário sobre como a fotografia é um complemento ao olhar, mas que sozinha não nos permite muito em relação à arquitetura. Então, volto à Sontag que em “contra a interpretação” menciona, em 1964(!!!) que já estávamos num mundo imerso em excessos, ela então fazia um convite: “O que importa agora é recuperarmos os nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais”. E eu concordo com ela.
Para finalizar, vou deixar aqui este ensaio belíssimo na Farnsworth House (1951), de Mies van der Rohe, da revista Kinfolk.
O poder da descrição de odores em “O Perfume” e algo tão único que eu, sinceramente, nunca vi igual. O livro, com sua incrível descrição, causou-me inúmeros enjôos durante sua leitura, tantos que chegou um momento eu fui incapaz de prosseguir, paralisada pela experiência tamanha a minha sensibilidade.
O original, em inglês, é: “Because of the routines we follow, we often forget that life is an ongoing adventure. . . Life is pure adventure, and the sooner we realize that, the quicker we will be able to treat life as art: to bring all our energies to each encounter, to remain flexible enough to notice and admit when what we expected to happen did not happen. We need to remember that we are created creative and can invent new scenarios as frequently as they are needed.”
Você é muito sensível, amiga. Adoro trocar referências e ideias com você ♥️ Sua news está preciosa, como sempre 🫶🏻
Muito rico seu texto.. gratos