Curadores de nossa própria narrativa
Há uns meses, reencontrei minha orientadora da faculdade, por quem eu nutro um amor imenso e uma admiração genuína. Ela me perguntou como eu estava, e eu disse que estava correndo atrás do meu sonho na tentativa de realizá-lo. Ela então, com sua elegância despretenciosa de sempre, respondeu: “e não é isso a vida? Estar sempre correndo atrás de um sonho ou outro? O bom é que se não der certo a gente muda. E muda de novo. Bom é não perder a capacidade de sonhar. Pq a vida é mais isso do que qualquer coisa: sonhar sempre”
Saí renovada do nosso encontro. “E não é isso a vida?”
Eu vejo que muitas pessoas querem transformar seus sonhos realizados em mementos, em pequenos itens de memória que ficarão espalhados pela casa, para que assim se lembrem de tudo que realizaram ao longo da vida. Eu já comentei aqui que a única decoração que tenho na minha casa são caixinhas, nas quais guardas coisas, quadros e livros. E uma Santa Teresinha, é claro, minha amiga fica na minha mesa de cabeceira intercedendo por mim. Acaba que tudo eu escolho tem uma “determinada função”. O que tenho de memento são gravuras especiais que trago de museus ou de feirinhas e acabo emoldurando quando sinto ser o momento certo. Nunca emolduro nada sem ter onde colocar; se precisar, ela vai esperar o tempo que for. Eu não tenho patuás, ou bibelôs e tudo que trouxe de viagens… adivinha? Fica dentro de uma caixa. Isso mesmo. Até um ou outro souvenir que trouxe comigo (eu não sou de comprar souvenires, mas sempre acabo ganhando coisa ou outra). O que eu acabo trazendo de viagem são pequenos jogos de chá ou café, itens de mesa ou algo realmente especial. Seja por imãs de geladeira, jogos de café, fotos ou até mesmo cartões postais de museu guardados em uma casa, desta forma, o viajar adentra a casa - quando vemos pequenos pedaços de memória “solidificados” e guardados de alguma forma.
Esta minha opção por não ter pequenos itens decorativos é uma escolha pessoal, uma vez que eu realmente não gosto de itens decorativos em excesso, mas também é pautada por algumas restrições - já comentei sobre elas aqui na edição “Simplificar a casa”. Minha casa é assim - quase isenta de mementos, mas eu sou curiosa pela casa das pessoas que são diferentes de mim. Sou mesmo. E acho uma curiosidade natural dada a minha profissão e também genuína por querer conhecer mais sobre a história de uma pessoa. Como coloquei na semana passada, Deborah Berke coloca de forma bonita que “uma pessoa, assim como uma paisagem, vem com uma história”. E, para ela, “Casas devem providenciar espaços para coisas, assim como para pessoas. Somos, muitas vezes, definidos por nossas posses”. Ela até contabiliza isso como uma dentre de suas 8 regras da casa: “Regra 5: Contabilize todas as coisas. Exponha poucas”. Isto está diretamente ligado com o que Frances Mayes coloca naquele livro sobre a casa que comentei num post em Janeiro chamado “Imaginar a Casa”: “Que ato íntimo é convidar alguém para adentrar sua casa”, afinal, esta pessoa está entrando em nosso mundo; nosso museu, poderíamos colocar assim.
Podemos ter coleções de arte, de mobiliário.. enfim, não apenas itens de menor escala. Aliás, eu acho que uma casa tem uma coleção de mobiliários que levamos conosco para outros lugares… mas ainda vejo que pequenas coleções são mais comuns. Ingrid Fetell Lee, em “As cores da Alegria” - livro que já comentamos aqui, também menciona coleções. Ela comenta que grupos de coleções, quando expostos, tem um efeito no cérebro que acaba por trazer alegria a quem os vê organizados; mas essa coleção tem que ter um sentido - desde ser um grupo que foi de fato colecionado ou pequenos itens agrupados por algo em comum. Pra não dizer que eu não tenho uma coleção, eu tenho duas: uma de livros (que eu espero que se torne uma biblioteca um dia - afinal dizem que são precisos 1000 volumes para ser considerada como tal) e eu tenho uma coleção de lápis de cor (que eu uso) e de lápis que trago de viagens, desde pontos turísticos, à bibliotecas, museus e arquivos pelos quais passei. Elas ficam no escritório próximos à umas gravuras de artistas modernas1. E este conjunto diz muito sobre mim, o que corrobora com a frase de Berke, em seu livro, na qual ela indica coleções como algo que nos define e é necessário apreciar estes itens e entender o porquê de tê-los em casa. Não é apenas ter algo e expor ou expor de qualquer forma, precisamos entender como expor estes itens que contam um pouco de nós - nossa vida, nossos sonhos, nossas conquistas. Quando ela aponta isto no livro, ela mostra uma casa cuja coleção de obras de cerâmica, salvo engano, fica resguardada por portas para que sejam protegidas quando os netos dos habitantes estão no local - proteger a integridade de uma coleção é importante. Retomo aqui a frase da arquiteta que trouxe na edição anterior: “A profundidade da exposição revela a riqueza e a atenção empregados na reunião destes itens”. É como se fôssemos curadores de uma exposição única, só nossa.
Há um tempo, vi o vídeo do apartamento de uma jornalista de moda. E a partir deste vídeo, quis dividir em uma edição algumas das notas que tomei mentalmente enquanto eu o assistia. Eu já acompanhava o trabalho desta pessoa e eu tinha uma curiosidade natural por ver mais da casa que ela ocasionalmente mostrava nas redes sociais. Quando o YouTube me recomendou que visse o vídeo de sua casa, não demorei a vê-lo.2
Eu não imaginava a quantidade de coleções que uma pessoa é capaz de ter em casa, quiçá trazer de viagem. E ela tem várias coleções e muitas que mostram como trabalho e vida pessoal se encontram naquele lar. Nada é isento de significado ali. Os convites de madeira de desfile de moda viraram ornamentos. O pedaço da forração de uma passarela de outro desfile, virou tapete da sala. O mais interessante: as coleções são agrupadas de acordo com temas/viagens - exatamente o que Lee comenta em seu livro, há uma lógica ali naquela organização que traz alegria pro usuário. Por um momento, ao assistir aquele vídeo, me senti despegada demais, por ser o oposto do que eu considero ideal, me causa estranhamento, mas ele me mostrou algo importante que eu sempre gosto de pensar: as coisas tem o significado que atribuímos à elas de acordo com a experiência que tivemos e até mesmo nossa crença - lembra da porta vermelha que comentamos na edição passada?
O livro de Berke não é apenas sobre interiores e sim, arquitetura. Ela até coloca em pauta a questão dos armários - que podem ser ocultos, podem ter uma “bossa”… mas ela também coloca que ao construir algo, precisamos pensar nesses itens especiais que queremos expor pois eles, muitas vezes, podem requerer espaços projetados especificamente para eles na arquitetura tamanha sua importância. No caso da jornalista mencionada acima, por exemplo, seria impensável projetar uma casa para ela do zero sem pensar em contemplar toda a coleção de coisas que ela tem. E o fato de termos uma casa projetada não significa que mesmo assim não haverá desordem. Mas, como Berke coloca, ter o espaço de armazenamento certo pode até ser uma forma de “acomodar - ou até mesmo emoldurar - a desordem”.
Deborah Berke ainda menciona que quando temos porcelanas em excesso, guardadas apenas para ocasiões especiais, é sinal que provavelmente temos porcelanas em excesso. Para ela, “a habilidade de ver quantidade é um mecanismo de controle; nos fornece uma ponto de referência para manutenção de quantidade”. Ao ler isso, me lembrei de outro livro que já comentei aqui também, o Joie de Ajiri Aki, que tem um capítulo no qual ela comenta sobre as louças que a mãe guardava para ocasiões especiais e raramente usava. Me lembrei da minha avó pedindo a minha mãe para usar a louça especial dela (que era da minha avó) para um café com as irmãs pois ela queria transformar aquele momento em uma ocasião especial. E Berke então repete o óbvio pra gente: “o valor dos bens reside na capacidade de utilizá-los, empregá-los e usufruí-los. Idealmente, possuímos coisas para usá-las”, ou seja … não é pra guardar algo somente para quando receber alguém, e sim incorporar aquele item na vida - assim como as coleções na decoração - para que faça sentido.
Acho que poderíamos resumir a edição de hoje, para fechar a dupla enviada esta semana, assim:
Precisamos conhecer o impacto de coleções e seu significado para nós- sim, elas podem trazer alegrias, desde que agrupadas de acordo com um denominador comum. (altura, cores, tema)
Entender que a casa é um organismo vivo e ela não é isenta de desordem - aliás, vi na internet um termo que adorei “decoração infantil chic” - quando há brinquedos por todos os lados rs. Não se preocupe, nem um dos herdeiros de um dos homens mais rico do mundo escapa disso.
Reconhecer a quantidade dos itens que colecionamos para que seja possível usufruir deles, já que estar vivo é a ocasião especial.
E por falar em viagens e coleções, não sei se já comentei aqui, mas recebi a indicação deste livro Arte à mesa – diálogos entre arte e comida na América Latina e fiquei encantada!
Até breve!
A próxima edição a ser enviada é “Inspirações de Junho”. A partir de Julho, a newsletter passará a ter um plano pago. Haverá uma edição mensal gratuita, mas todas as outras edições do mês e o arquivo estarão disponíveis apenas aos assinantes pagantes. Pelo botão abaixo, até o dia 03/07/24, estou oferecendo a você, que já me acompanha por aqui, um desconto de 15% no primeiro ano de assinatura!
Uma curiosidade: eu só tenho emolduradas/expostas em casa gravuras/obras de artistas mulheres.
Um parênteses: Vou comentar uma pequena coisa que me incomodou: num dado momento, o apresentador fala “sua casa é até quase minimalista”. Eu fico muito preocupada com a forma com a qual as pessoas tem usado minimalista como um sinônimo para ausência de excesso. Minimalismo é muito específico, está ligado a rejeição do ornamento. Eu vou repetir: eu sou chata com isso pois vejo que a palavra tem sido banalizada e utilizada bem longe de seu sentido original. Minimalismo é uma filosofia e um movimento que tem especialidades complexas.