Newsletter #6
Arte como commodity; lifestyle de bilionários na série e na vida real.

Você está preparada/o para a news de hoje? Eu espero que sim. Reserve uns minutos, ela está um pouquinho mais longa que as anteriores. E sugiro que se você ainda não tenha visto as séries que vou comentar aqui, já reserve um tempo na agenda, porque, na minha opinião, elas valem a maratona.
"You have to stand in front of a painting, feel what it does to you"
Bobby “Axe” Axelrod
Essa semana aconteceu o tão esperado retorno de Billions, série estadunidense da Showtime que conta a história de um bilionário Bobby “Axe” Axelrod alvo de inúmeras investigações do procurador federal, Chuck Rhodes. A série é inspirada em um caso real na cidade de Nova York e, assim como tantas outras, teve suas gravações interrompidas em decorrência da pandemia de COVID-19. Eu estava ansiosa por este retorno. Ao ver o episódio essa semana, eu quis comentar sobre uma cena na qual Michael Prince, um concorrente de Axelrod nos negócios, vai até sua casa e faz o uso de diferentes expressões para qualificar - (ou desqualificar) o local e seu proprietário também. Prince mencionou então as filosofias de vida que acabaram por promover uma estética: a japonesa “Wabi-sabi” (que presa pela imperfeição e impermanência (comentei brevemente sobre “Kintsugi”, parte desta filosofia, neste post) e a dinamarquesa “Hygge” que preza pelo aconchego e bem-estar.
Mas eu percebi que não bastava comentar apenas uma cena, era preciso mais! Como construir um set e criar uma representação desse estilo de vida que - em 2021, segundo a Forbes - abrange apenas 2755 pessoas no mundo?
Os Estados Unidos é o país líder no ranking de bilionários no mundo, seguido pela China e pela Índia. EUA, Reino Unido, que ultrapassou a China em 2019, são os maiores mercados de arte. Sendo assim, escolhi então abranger o assunto, falando não apenas de Billions mas também incluindooutra série que envolve este lifestyle de bilionários. Também norte-americana, Succession, da HBO, também foi inspirada em “personagens” reais. Na trama, o patriarca Logan Roy está a procura de um herdeiro que irá sucedê-lo como CEO de seu grupo, o Waystar Royco. Em termos de set design eu, particularmente, me identifico mais com o design do set de Billions do que com o da série da HBO. No entanto, a moda de Succession, elemento que também compõe a produção artística da série, tem minha total atenção. Enquanto em Billions a moda, a meu ver, tem seu papel não se destaca tanto quanto outros elementos que compõe o estilo de vida dos personagens (há discussões no reddit até sobre os livros que aparecem na trama)1. Na série da HBO seu papel como uma forma importante de expressão dos personagens e suas identidades é mais forte, a exemplo de Siobhan “Shiv” Roy, muda muito de uma temporada para outra e usa jóias vintage como uma forma de mostrar sua ligação e herança materna (o clã tem origens irlandesas. Lembrando que jóias também são consideradas como uma forma de arte colecionável, sendo, inclusive, uma divisão em casas de leilão como Sotheby’s e Christie’s - teremos uma news dedicada ao tema em breve. É muito importante entendemos como todo esse conjunto da produção artística ajuda a contar a história de uma trama. Mas, como sempre, aqui vou me ater ao que nos interessa: interior design (no caso, set design) e arte.
Em Billions, obras de arte são elementos importantíssimos na composição da cenografia, e dão apoio à narrativa da trama. No entanto, o mundo da arte ganhou destaque em sua quinta temporada quando abordam questões como mecenato, quando ele passa a pagar um artista, Tanner, para produzir para ele, e acerca de sua excepcional coleção, cujos exemplares - na vida real - pertencem ao Musée D’Orsay, ao Metropolitan Museum of Art e à National Gallery of Art. No episódio 5x06, Axe fica em evidência ao participar de um esquema no qual armazena réplicas de sua coleção em um free-port, a fim de evitar pagar impostos pelas obras. Ao ter seu esquema descoberto por Chuck e podendo ser acusado por tax-fraud, ele que tem de agir rápido, sendo assim, abre um museu particular por meio da Axerold Foundation para expor suas obras conseguindo assim dedução dos impostos. A cena do vinho no Van Gogh? Melhor nem comentar.
Enquanto as obras de arte ganham tempo de tela e closes em Billions, Succession faz uso das artes quase como um “cartão de apresentação”. É importante ressaltar a diferença dos elementos artísticos expostos nas duas séries. Enquanto Axe, personagem de origem humilde que enriqueceu e conquistou seu espaço em Wall Street, tem uma coleção diversificada que inclui artistas como Van Gogh, Gauguin, Jean-Michel Basquiat, Frank Stella e Koons (assim como Steven Cohen, a inspiração por trás do personagem). Logan Roy, em Succession, possui um interesse por obras clássicas. As obras em destaque nos pôsteres da série da HBO datam dos séculos XVII e XIX, e, ao longo da narrativa, são mencionadas transações envolvendo documentos e outros itens históricos por seu primogênito, Connan Roy “itens sem valor para pesquisadores mas do interesse de curiosos”.
É interessante observar como as tramas incorporam isso aos personagens. Axe está em ascensão, construindo um império em Wall Street, enquanto Logan está procurando um herdeiro para seu legado no ramo das telecomunicações. Logan (80 anos) já foi Axe (em seus “early 40’s”) em um outro tempo e, pela sua idade, ele vivenciou parte da produção de arte e mobiliário que Axe está colecionado e usufruindo. Seu perfil conservador, tal como revelado na série, nos mostra como ele não absorveu essas revoluções artísticas, optando assim pela manutenção de um estilo clássico como modus vivendi. A arte que uma pessoa escolhe para sua casa dialoga com quem ela é, seja pela ideologia do um artista e reflete os movimentos e acontecimentos da época em que foi produzida, ou pela posição social.
E quando eu falo em arte, eu incluo o design e a arquitetura. As cadeiras expostas na Axe Capital em Billions, por exemplo, datam respectivamente de 1930 (Brno Chair, de Mies Van der Rohe como vista no escritório de Wags), 1958 ( as variações do Aluminum Group Management ChairManagement Chair, Soft Pad Management Chair de Charles and Ray Eames, espalhadas por toda Ax Capital) - o valor dos itens de décor que pesquisei estão na média dos 4.500 dólares. Uma mudança que considero importante, foi a transferência da Axe Capital de um edifício horizontal, em meio ao verde para um edifício no meio de Manhattan. Ficou nítida a hierarquia da empresa com as salas de Axe, Wags e o espaço para reunião no mezanino e a área de trabalho compartilhada junto do consultório de Wendy - “a base” da Axe Capital. Wendy Rhoades (veja a inspiração por trás da personagem aqui) é uma psiquiatra com expertise em performance, cujo escritório fica dentro da empresa de Axe. Na primeira temporada era uma sala muito branca, na segunda ganhou texturas e outros elementos que constroem uma atmosfera de acolhimento para que os funcionários sintam-se a vontade (mas nem tanto) ali. Na quinta temporada ganha mais transparência com uma membrana de vidro no lugar de uma das paredes. Dentre os mobiliários que compõe as diversas salas de Wendy, estão a cadeira Eames em cor caramelo e não branca como no resto da sede da empresa e as poltronas Elizabeth (1956), do arquiteto dinamarquês Ib Kofod-Larsen. Mesmo com a mudança de cenário de uma temporada para a outra, alguns elementos são mantidos e, às vezes, mudam de lugar, o que pode ser até uma alusão ao posicionamento da própria personagem (aí só vendo a série toda para entender).
Recomendo que você veja aqui o trabalho de Michael Shaw com o cenário de Billions, especialmente o apartamento de Axe nas primeiras temporadas. Na terceira temporada ele se muda para esta cobertura que vai representar seu novo estilo de vida: o de um solteiro morando em Tribeca. Ele deixa de ser um “upper east sider" e vai para “downtown”. Ed Verreaux, set designer, explica como a décor da cobertura “espelha” o design da Axe Capital. Segundo ele, “uma atmosfera fria, austera e sagaz que acaba por refletir a personalidade do dono”. Axe tem muito poder e isso fica claro por meio dos sets da série, seja pelo próprio imóvel, pela decoração ou pelo conjunto de obras de arte. Enquanto o apartamento de Axe é uma locação real, a mansão dos Roy é uma invenção. O set foi baseado em diferentes locais existentes na Cidade de Nova York, como e Harold Pratt House e a Irish-American Historical Society locais usados pelo designer Stephen H. Carter para a construção da casa de Logan Roy no episódio piloto da série.
Embora os personagens sejam bilionários, as produções tem que lidar com limites no budget para criarem e reproduzirem esse mundo e estilo de vida. Carter comentou que uma propriedade nas proximidades de Nova York foi usada como se fosse um castelo na Hungria, tendo de fazer paredes falsas para poder pendurar todas as artes que compunham aquele cenário. Na entrevista que concedeu à Business Insider, acerca da criação desse estilo de vida dos Roy, Carter comentou sobre os desafios de encontrar locações que não fossem apenas esteticamente mas também eticamente satisfatórias, como no caso da busca pelo yatch dos Roy. (Confesso que não gosto da decoração do yatch, acho que foi uma vingança pessoal da Marcia)
Criar um cenário é como criar um projeto para um cliente real, mas Como atender alguém que “nasceu” aos 80 ou aos 40? Como seu repertório foi construído? O que atraía o olhar daquela pessoa que construiu um império “do zero”? Logan e Axe têm isso em comum, a imagem do “self made man” aquele homem que fez sua fortuna, embora em tempos e situações diferentes. É preciso entender a trajetória e, especialmente, a jornada daquele personagem até ali. Sendo assim, a partir do exemplo da Mansão dos Hamptons, Carter explica que ele entendeu que Logan se sentiu “realizado” quando a Royco se fundiu com a Waystar, já era bem mais velho, aos 60. Carter menciona: “Até então [antes dele se realizar], ele estaria crescendo, um jovem rapaz indo a festas, tentando imaginar quem seria sua primeira esposa. É neste ponto que as coisas são marcadas em você”. A palavra que eu traduzi como marcada é Indelible, e me chamou a atenção. É algo que nos marca pra sempre, que não deixa de fazer parte de quem somos. E então ele apresentou como o repertório de Logan foi criado, o que definiu como uma décor clássica “dentro do que poderia ter sido considerado moderno e prático no final dos anos 1960”. A casa nos Hamptons, tem uma decoração bonita e elegante. Tons de creme, branco, azul predominam em meio à boiseries e mobiliário clássico. Apesar de apresentar uma linguagem “clássica” contempla uma simplicidade, mas é extremamente oposta à produção arquitetônica ou interior design que estavam sendo feitos à época (the Mid-Century Modern - taí a origem do nome The Mid, meu período preferido), como por exemplo, as obras de arquitetos como Neutra, Eames e Mies Van der Rohe nos outros estados americanos. No entanto, abriga peças de outras épocas resultando numa composição harmônica, que dialoga com esse personagem.
Billions valoriza especialmente as obras de arte no cenário, e Sucession, como eu disse, as utliza como cartão de visita. As artes ganham destaque e estampam os pôsteres das temporadas 1 e 2. Na primeira temporada, a família é retratada na frente da obra “The tiger hunt” de Peter Paul Rubens, que data do século XVII. Já na segunda, a família está em frente a “Dante and Virgil” de William Adolphe Bouguereau, do século XIX, inspirada na “Divina Comédia”, e que foi emprestada pelo Musée D’Orsay, de Paris. Fui pesquisar o que estava por trás da produção desses pôsteres e cheguei até à Core, agência de Publicidade e Design que trabalhou para a série e expôs em seu site um exemplo de processo criativo para o pôster da primeira temporada que inclui versões com outras obras de arte como “A coroação de Napoleão”, de Jacques-Louis David que está no Louvre, “A coroação de Carlos Magno” e uma versão com Kendall e o busto de Júlio Cesar.
Segundo este artigo, encontrado no portal Artnet, o uso de obras de arte em séries é resultado de longas negociações que pode permitir, inclusive, réplicas específicas que são destruídas após o final das gravações para evitar que caiam no mercado. Devido ao longo tempo em que ficam em uso durante as filmagens, as réplicas acabam sendo as preferidas para estarem no set. O uso de uma obra real, imagino, deve ser muito mais oneroso uma vez que essas obras tem um alto valor a ser assegurado, sem contar a condições de armazenamento, manutenção e manuseios exigidos por cada peça. Das obras de arte que vemos nas telas, em geral, as esculturas têm mais chance de serem originais pela dificuldade de reprodução. Neste artigo da Business Insider, Shaw conta que fez pesquisa de campo por acervos e contou com a consultoria cultural da Culture Corps para compor a coleção de arte de Axe em Billions. É a Culture Corps a responsável por assegurar os direitos de reprodução e supervisionar a destruição da obra ao final da temporada. As artes que vemos na série acompanham as mudanças do storyline, criando assim diferentes atmosferas que levam os espectadores a terem uma outra percepção da história. Nenhuma escolha é feita de forma despretenciosa, tudo é intencional.
Como visto, para Shaw, a arte não é apenas vista como investimento especulativo (o valor de uma obra, e sua valorização, é imprevisível, lembram do leilão do Banksy em 2018?) Mas também como troféus para muitos que podem comprá-la. E não apenas uma forma de mostrar seu poder aquisitivo como também sua identidade. O designer revela que Basquiat, por seu caráter experimental, é um dos preferidos em Wall Street. Mas não é apenas em Wall Street que o pintor, descoberto por Warhol, chama a atenção. Na nova campanha About Love da Tiffany&Co, joalheria do grupo Moët Hennessy Louis Vuitton (LVMH), “Equals Pi” (1982) uma obra do artista, predominantemente em Robbin’s egg blue (o famoso “azul tiffany”) se destaque em meio ao casal Beyoncé e Jay Z, aka “The Carters” (vamos relembrar Apeshit?). Já há algum tempo a joalheria vem tentando criar estratégias para atrair as novas gerações como público consumidor, a exemplo do Blue Box Café, que foi concebido para promover uma nova experiência dentro da joalheria. About Love tem três estrelas importantes: The Carters, o famoso diamante amarelo, e a obra de Basquiat, que foi adquirida pela joalheria. O anúncio tem recebido inúmeras críticas e divide opiniões dos amigos do artista. Li que “Equals Pi” teria sido escolhida para compor a campanha por conta da paixão que o casal compartilha por arte, especialmente por Basquiat, artista que figura em sua coleção pessoal. Alexandre Arnault, VP da Tiffany e herdeiro do LVMH, é conhecido por sua coleção de arte, aliás, os Arnault (terceiro lugar no ranking dos mais ricos do mundo) já declaram ter pelo menos uma dúzia de obras do arte do artista em sua coleção, e em 2018 as emprestaram para compor uma exposição em homenagem à ele na Fondation Louis Vuitton, projeto do starchitect Frank Ghery. Segundo o VP, a cor da obra teria sido o motivo de sua aquisição pela joalheria. Ele já mencionou que acredita que ela é uma “homenagem” do artista à joalheria (ou apenas seria uma “coincidência cromática”?). Basquiat é um dos artistas mais valorizados no mercado da arte, sua obra vale em média US$ 10m. A Tiffany não foi a primeira interessada em incluí-lo em um “Ad”. O artista tem uma história de colaboração com a moda2 , e recentemente, seus trabalhos também estiveram em evidência em outras campanhas, Comme des Garçons e Coach, o que só reforça o comentário de Shaw acerca do interesse desta geração no caráter experimental do artista. Eu quis fechar a news de hoje com esse caso não para apontar ou reforçar as críticas já discutidas, mas para comentar uma situação análoga ao que vemos nas séries, e que inclui a discussão da arte como commodity.
Até a próxima!
Ps: era para ela ter sido enviada ontem, no entanto, meu computador estava na assistência, só a enviei hoje por isso. Semana que vem, voltaremos à programação normal. No entanto, não achei tão ruim, uma vez que ontem saiu o trailer da nova temporada de Succession, que retornará no dia 17 de outubro.
Ps2: Arte como Commodity: Veja os comentários dos artistas Marina Abramovic e Richard Serra durante suas visitas ao Brasil nos anos de 2015 e 2014, respectivamente.
EDIT 14.12.21: CUIDADO CONTÉM SPOILER
Na 3a temporada de Succession, que terminou nesta semana, o set foi invadido por obras de arte modernas e contemporâneas. Elas já estavam lá, mas não as víamos em algumas cenas com Logan, por exemplo, e mais com Kendall. Uma diferenciação interessante em relação às outras temporadas, que fez muito sentido ao final da série quando Logan optou por uma fusão com outra empresa, além de rever o divórcio com a ex-esposa Caroline, cortando assim os direitos dos filhos perante à empresa. Nesse “move", tudo fez sentido. Pode parecer bobo, mas ao comentar com uma amiga que estava percebendo as diferenças no cenário, ela disse: “você precisa comentar sobre isso”, eu respondi que só seria prudente fazer isso ao final da série, quando tudo estivesse acabado e, de fato, fez diferença em relação à narrativa.
Vale o clique e a leitura: Moda em Billions geralmente levam à Wendy e Axe, mas encontrei esse perfil da Kate Dillon - Taylor Mason - feito pelo The Cut.
Note o que a autora escreve no artigo da GQ que está linkado: “It’s the kind of impertinent dance with consumer culture that artists today are usually too self-righteous to undertake”. aproveitando a “quote”, o Wall Street Journal questionou: Has Fashion’s Licensing of Art Gone Too Far?