A Mangueira e o "abraço em português"
Eu costumo brincar que a vida é muito curta para aprender alemão, pois eu acho que esta é uma língua dificílima. Há mais de dez anos eu me joguei numa aventura: aprender mandarim! Eu posso estar enferrujada, mas pelo que eu me lembre, de acordo com a entonação, a palavra MA poderia muitas coisas. Ex: Ma, pode ser o que indica que uma frase virou pergunta, má (com acento crescente) é apimentado; mā (com sonoridade constante) é mãe; mǎ (com decrescente e crescente) é cavalo.
Eu não continuei no mandarim. Apesar de ainda achar o alemão extremamente difícil, acho mais possível aprender mandarim. Comentei o filme coreano “Vidas Passadas” em um das últimas edições, e uma das minhas cenas preferidas foi o diálogo no qual o idioma é colocado em pauta. O marido comenta que a esposa sonha em coreano, e que ao sonhar em coreano é como se houvesse uma fronteira entre os dois e ele não pudesse acessá-la. Ele então comenta que adoraria entrar em contato com aquela parte dela por isso ele estava aprendendo seu idioma, com o intuito de quebrar aquela barreira e conseguir, de algum modo, acessar aquela parte do mundo dela ainda tão distante dele.
O idioma é uma coisa engraçada, né? Eu ouvi alguém dizer alguma vez que não deveríamos fazer terapia em outro idioma que não o nosso, pois a gente pode não saber expor ou talvez não expor completamente (ou com uma certa honestidade) a forma como estamos nos sentindo. Uma vez, tive a oportunidade de fazer uma sessão com uma psicóloga sobre a mente bilingue. Estava fazendo intercâmbio e com uma dificuldade em tomar notas e escrever artigos diretamente em inglês e não em português - minha cabeça misturava os dois idiomas (as vezes 3 ou 4 quando eu estava em acervos); meu caderno estava uma confusão - o que refletia um pouco como eu me sentia internamente, o que era perfeitamente normal.
Nesta sessão que tive, sendo a psicóloga também bilíngue, ela me explicou muitas coisas… me encorajou a falar mais sem medo de errar, a entender que por mais que eu estudasse, nunca seria como uma nativa (isso mudou uma chavinha na minha cabeça). E que por mais que eu entendesse outros idiomas muitíssimo bem, as vezes eu teria dificuldade para me expressar e que eu deveria entender que tudo bem. O mais complicado foi quando ela me perguntou “E fora a escola, tudo bem?” e eu travei. Mexi a cabeça assentindo que sim, querendo dizer não, pois o que eu sentia eu poderia transbordar em português, mas não em inglês, e ao fazer isso entendi por que desencorajam fazer terapia em um idioma que não nosso. Essa experiência foi incrível. Ainda hoje lembro exatamente da sala, da atenção de Aurora, a psicóloga, e de como ela expôs a experiência dela, como mexicana nos Estados Unidos, para se aproximar da minha.
Pego então as palavras de Fernando Meirelles emprestadas para dizer: “eu sinto em português”. Eu sinto saudade, e como traduzimos isso? Afinal é uma palavra sem tradução. Talvez você já tenha se esbarrado com um recorte de um vídeo no qual o diretor Fernando Meirelles comenta a Mangueira. Quando indagado se ele se mudaria para os Estados Unidos, ele respondeu:
“Não, eu tenho raízes profundas no Brasil e eu gosto de dirigir em português. (…) e porque é diferente, quer dizer, eu entendo inglês mas eu não sinto em inglês. Por exemplo, se você disser mango tree (mangueira, em inglês) é só uma árvore. Em português, Mangueira é a minha mãe”.
Fernando Meirelles, diretor
Eu me emocionei muito ao ver este vídeo pela primeira vez e ainda me arrepio toda vez que eu o revejo. Este vídeo é um fragmento de uma mesa redonda1 promovida pelo The Hollywood Reporter e além do diretor brasileiro Fernando Meirelles, estão os diretores Todd Phillips (‘Coringa'), Martin Scorsese, Lulu Wang ('The Farewell'), Noah Baumbach (‘História de um casamento'), Greta Gerwig (hoje mais reconhecida por ‘Barbie’). A mesa toda se emociona com a sua fala, em especial Lulu Wang. Aliás, eu recomendo a entrevista que ela deu ao podcast Chanel Connects; foi muito bonito ouví-la comentando sua experiência como diretora, a forma como ela percebeu os desafios e as ideias de sucesso e fracasso na carreira. É um dos episódios mais legais que ouvi. Que aliás, retratou em ‘The Farwell” algo que aconteceu em sua família, uma família chinesa que emigrou da China para os Estados Unidos e como reproduzir com autenticidade a experiência de sua família para as telas.
Voltando ao sentir, acho que o exemplo que ele dá da Mangueira é fortíssimo. É uma coisa tão nossa, mas capaz de marcar tantas pessoas. Um exemplo disso foi o desfile de despedida de Gabriela Hearst da Chloé no qual ela levou a Mangueira para a passarela, em Paris. Embora seja de origem uruguaia, ela também tem vínculos com a escolha. Para ela, Mangueira era onde sua mãe desfilava. Para mim, é impossível não pensar em Beth Carvalho e Cartola ao ouvir o nome da escola.
Quando Lulu fala sobre reproduzir com autenticidade uma experiência, eu sempre penso nos desafios dos criativos neste sentido. Como traduzir em palavras, em obras, ou em um filme, algo tão pessoal?
Este final de semana, li o livro de Tamara Klink, “Mil Milhas”, (peguei o e-book emprestado no BibliOn) após ler o post de
sobre ele. Amei as citações que ela trouxe. Ao longo do livro fiz várias marcações. Duas coisas me chamam a atenção - como ela coloca o tempo todo que aquela era uma aventura em solitário, e por mais que seja - em qualquer jornada - parece que o fato de velejar e estar, em algum momento, no meio do mar, longe de tudo, e isso ecoa de uma forma diferente. Por mais que encontremos conhecidos ou amigos de amigos ao longo da nossa jornada, como ela ilustra, a experiência é sempre nossa, não tem como alguém fazer isso por nós, e acho que ela consegue expor isso ao longo do livro; inclusive como precisamos de coragem para encarar jornadas tão nossas, sem depender de ninguém.Outra coisa que me chama a atenção é a beleza e a simplicidade com que ela coloca coisas tão importantes. Em um momento do livro, ela fala em como ela precisava de um “abraço em português” e como isso as vezes é fundamental: encontrar alguém com quem possamos transbordar - no sentindo de encontrar alguém com quem possamos conversar sem pensar muito (ou traduzir). Lembrei de mim. Lembrei de um amigo que falava um português que não o meu, já que ele aprendeu sozinho usando o dicionário e que parecia um personagem de Camões. Lembrei de uma amiga italiana que falava português de Portugal e todas as vezes que eu precisei me lembrar o que era “fixe” em seu vocabulário. E como um idioma pode ser tão plural.
Pensei em todas as vezes que eu me encontrei numa situação embaraçosa em outra língua, do meu espanhol formal e, ao mesmo tempo, tão informal como o ¡Pisa y corre! que demorei até entender o que era pois eu apenas entendia “pisicorre”. Do meu francês da aliança francesa que não fazia bonito com os canadenses, mas que dava um crédito com os franceses. De muitas histórias de “Lost in translation”2 e “intercultural communication”3. E, ao mesmo tempo, de tantas vezes que na minha própria língua eu fui mal compreendida ou tive dificuldade de me fazer entendida.
Achei muito potente essa fala dela do “abraço em português”. Ao ler isso também me lembrei de uma situação inusitada em Addis Ababa, na Etiópia. Estava sozinha, era madrugada. Estava numa fila, cansada da viagem, irritada e com fome, peguei meu iPod e lembro que estava ouvindo este cd de Bebel Gilberto. Eu tenho o péssimo hábito de cantar baixinho sem perceber quando estou com fones de ouvido. Nisso, um senhor português que estava a minha frente olhou pra mim. Demorou um pouco até que eu entendesse que ele estava falando comigo. E, ele me perguntou se eu era portuguesa. Eu respondi que não era. Ele riu sem graça. Disse que estava há tanto tempo longe de casa e não ouvia alguém falando português, que era uma oportunidade de conversar em seu idioma. Conversamos um pouquinho. Ele perguntou o que eu estava ouvindo, logo se despediu e foi para o seu portão de embarque. Entendi que sem saber, pude ser - talvez - o “abraço em português” de alguém.
Aurora, a psicóloga, me aconselhou a escrever sempre em português e depois traduzir, assim eu conseguiria expor melhor minhas ideias e com o tempo, iria me acostumando. Daria mais trabalho? Com certeza, mas era um processo a ser seguido. Meu orientador, também bilingue, me incentivava a fazer ir oposto, ir logo escrevendo em em inglês, desbravando novos caminhos, economizar tempo e ver o que daria no final. As pessoas só esquecem que quando escrevemos textos acadêmicos é como se escrevêssemos quase que em um idioma próprio, dada a formalidade do texto. Existe um conforto em escrever e falar em nossa própria língua, do nosso jeito, o que de certa forma é um tipo de casa, pelo menos traz o conforto e o aconchego de estar em casa.
O livro de Tamara Klink traz frases lindas. É curioso pois ao ler seus relatos de sua jornada de mil milhas entre a Noruega e a França me lembrei muito do livro “É a Ales” do noruguês Jon Fosse, ganhador do Nobel da literatura de 2023, pelo fato de ela usar uma única palavra algumas vezes: fiorde (um canal entre duas montanhas). A sensação que eu tenho é que nunca tinha ouvido “fiorde” até ler Fosse. Tamara também me apresentou um vocabulário com palavras desconhecidas; quando ela compara nós aos nós (milha náutica por hora = 1.852 km/h) e tantos outros pequenos detalhes. Eu adoro como cada um de nós contém em si um vocabulário próprio; as vezes nem é preciso aprender uma nova língua, apenas ampliar o repertório por meio de um glossário.
Uma frase dela que me chamou muito a atenção foi a seguinte:
“É preciso sentir-se em casa para poder sair de casa, é preciso ter abrigo para desabrigar-se, expor-se. É preciso ter conforto para criar coragem de deixá-lo. Sem porto não tem partida, só a busca contínua por algum lugar. Sem segurança, sem escolha, não tem como haver liberdade. É só fuga; falta de opção, tentativa de chegar sem ter saído do nada. Achei meu ponto de partida”.
Tamara Klink em Mil Milhas
Apesar dessa frase se encaixar muito bem no que falamos aqui em relação à casa e o viajar, hoje, em especial, eu a vejo com outros olhos. Penso que essa casa pode estar muito ligada à nossa cultura. Para adentrarmos outra cultura, penso que é preciso estarmos conscientes da nossa como um todo e também a cultura do outro, a que vamos adentrar. Nossa língua, nossa comida, nossos hábitos. Não conheço um brasileiro que foi embora daqui e não sentiu falta de um brigadeiro, um pão de queijo… uma coxinha ou até mesmo um guaraná, e como as receitas as vezes tem de ser adaptadas com produtos locais pois lá não se encontra o queijo minas, ou o “leite moça”.
Tem um textinho que é fofo, e ao meu ver está ligado com o que comentamos aqui hoje, e diz assim: “O que eu faço com a saudade? Tem dia que eu faço besteira. Tem dia que eu faço caipirinha. Depende muito… Hoje, fiz brigadeiro”. (Bruno Fontes)
Nem todo relato de viagem tem como objetivo apresentar um destino. Muitas vezes, ele vai nos apresentar a jornada interna e pessoal de cada um. Cheryl Strayed, em seu livro Livre (Wild) , por exemplo, nos mostra isso quando resolveu caminhar a Pacific Coast Trail. Este é um dos livros que não consegui terminar, apesar de gostar muito da escrita da autora. Ao meu ver, Tamara Klink passou por um destes tipos diferentes de viagem.. ela passou por uma jornada que tem muito mais a ver com ela e com vislumbrar lugares do que experimentá-los, o que não invalida sua experiência como viajante, pelo contrário, me encanta ainda mais, pois escrever sobre jornadas internas me parecem tão mais difícil do que sobre lugares. A expressão que ela usa “em solitário” tem um peso. O texto dela também me lembrou outras experiências sobre o velejar que cheguei a ver, como o filme Destemida, que retrata a história de Jessica Watson, uma adolescente que aos 16 anos deu a volta ao mundo, também sozinha, em um veleiro. E também o livro Vidas à deriva de Tami Oldham Ashcraft, que eu li há alguns anos e até resolvi reler, após escrever este texto. Nele, a capitã Tami conta os desafios de ter ficado à deriva por 41 dias no mar em um veleiro na qual ela passou por um furacão. Uma experiência bem diferente da que Tamara teve. Acho que isso nos mostra como uma jornada é pessoal, e como o mesmo tipo de viagem passa por diferentes situações.
Por hoje é isto. Espero que você tenha um carnaval com muita alegria - seja ele no bloquinho na rua, ou no bloquinho do sofá (como o meu). Espero ler bastante neste feriado! rs
Nos encontraremos semana que vem, de novo :) no horário certo desta vez. Acho que minha cabeça se empolgou com o carnaval, por isso o texto hoje foi na hora do café da tarde e não no café da manhã, como de costume. Conte-me o que achou deste texto nos comentários. eu vou amar saber!
Uma curiosidade: enquanto estive na China, achei curioso que todos os lugares que íamos as mesas eram redondas. A razão disso é cultural! Chineses gostam de estar em volta da mesa e servir todos os pratos. Nesse formato não apenas a distância entre todos é a mesma, como também é possível ver todos, o que facilita as conversas em torno da mesa. Além de ter os espaço ao centro para os pratos e, comumente, os pratos giratórios, o que facilita o acesso de todos à mesa.
Lost in translation é quando traduzimos algo, mas no outro idioma a palavra ou a frase tem um sentido ou conotação diferente do que o que queremos dizer.
A capacidade de comunicação entre pessoas de diferentes culturas.
Seu texto me lembrou uma cena qualquer de uma série qualquer com Sofia Vergara, em que ela, indignada, fala em inglês que o interlocutor não fazia ideia do quão ela era mais esperta em espanhol.
De fato, não sou fluente em língua nenhuma, mas meu inglês faz com que eu construa sentenças quase ingênuas, só para conseguir dizer alguma coisa à outra pessoa. Não tenho repertório para ficar furiosa, expressar sentimentos, nem mesmo desenvolver uma ideia um pouquinho mais complexa.
Helena, cheguei aqui de paraquedas hoje graças à indicação da Gabriele, mas preciso dizer: que texto belíssimo, me senti completamente abraçada por ele, obrigada por este presente. Há meses elaboro sobre os encontros e desencontros que tenho tido com outras línguas e culturas. Tem dias que me sinto mais sozinha e que preciso muito de um abraço em português, mas há dias que eu sinto que transbordo nesse espaço contraditório em que existo. Não só perco, mas também encontro muito na tradução, como novas maneiras de olhar, sentir e expressar quem sou e o que sinto. No fim, não há nada como o conforto da nossa língua materna, mas acho uma brisa muito massa essa expansão de possibilidades. Que sorte é poder me identificar na tua tradução de sentimentos também. Bom feriado!