Criticando aquilo que conhecemos
como conhecimento e curiosidade transformam nosso olhar
Nos últimos dias estive trabalhando com muita atenção e cuidado nesta edição que toca em algo muito especial e caro para esta newsletter: nosso olhar. Enquanto preparava duas edições simultaneamente para enviar, entendi que precisava fazer um prelúdio que há muito tempo estava sendo desenvolvido e ainda não tinha tido a chance de elucubrar por aqui. Eu amo quando a inspiração vem e eu me sinto compelida a dividir aqui algumas experiências e reflexões que estão fora da programação mensal da newsletter. A edição de hoje é um exemplo disso e uma edição complementar ao post mais amado da newsletter:
Minha avó, muito sábia, me disse algo uma vez que até hoje eu reproduzo muito, era mais ou menos assim “se você desconhece algo, não pode criticar”. Eu era muito nova, tipo muito nova mesmo, e ela disse que se eu não aprendesse a fazer determinada coisa, não saberia avaliar a qualidade de um produto ou serviço. Aquela coisa que a mãe dela ensinou pra ela e ela passou pra mim, sabe? Os exemplos foram os mais diversos: desde uma barra de calça bem feita até cozinhar e isso me influenciou tanto na vida profissional como na vida pessoal.
E o que isso tem a ver com o olhar e curiosidade? Bom, já comentei que nosso olhar é amplamente influenciado por nossas experiências e repertório (ou vocábulo), e alimentar nossa curiosidade é uma forma de estar sempre modificando nosso olhar. Acontece que quando mais abastecido o nosso olhar estiver e mais ampliarmos o nosso repertório mais críticos ficamos uma vez que temos melhores condições de avaliar as coisas - veja bem, uso aqui o termo avaliar que é bem diferente de julgar. Aprendemos não apenas a ler melhor os espaços, como também as pessoas e com isso aprendemos a tomar melhores decisões e o melhor: aprendemos a justificar melhor nossas intenções e gostos. O Neil Gaiman tem uma frase em sua MasterClass que me tocou muito e é a seguinte: “quando quebramos as regras, encontramos nosso estilo” mas para isso é preciso conhecer as regras. Logo, ao justificarmos melhor nossas intenções e gostos, estamos também - de alguma forma - encontrando nosso estilo.
Um outro conselho que também carrego comigo, vindo de um amigo querido, é acerca da importância de “ter humildade para aprender” e neste caso aqui incluo o ouvir. Decisões simples são transformadas quando temos a disposição de aprender a ouvir e observar - aliás, um dos aprendizados do design thinking é observar para gerar insights - isto é valioso! (Vamos retomar este assunto qualquer dia).
Hoje, aqui quero dispor de alguns exemplos que aprendi nos últimos dias. Aprendizados que vão desde a escolha de mobiliários até compras de roupas online. Como já disse, o “olhar” envolve mais sentidos do que apenas a visão.
Um exemplo que eu acho interessante comentar aqui é em relação à costura e tecidos. Recentemente, ao comprar tecidos, aprendi algo interessante. O dono da loja se dispôs a me ensinar acerca de alguns tipos de tecido. Ele comentou, por exemplo, os diferentes tipos de viscose, e como 100% Linho na etiqueta da roupa não significa que a pessoa seja 100% Linho Puro. Comentei que havia comprado uma blusa cujo design eu amei e no site estava sendo vendida como 100% linho e ao chegar em casa, a blusa tinha uma porcentagem de algodão - algo que 55%. Ele então me disse então que o linho misto pode ser vendido como 100% linho enquanto o linho puro deve ser vir sempre acompanhado da palavra “puro”.
Sabemos que o linho misto com algodão, por exemplo, pode dar bolinhas por atrito. E que alguns tecidos podem ter propriedades semelhantes, como brim e sarja, embora brim, sarja e tricoline sejam feitos de algodão apresentam propriedades e comportamentos diferentes. Isso não se aplica apenas à roupas. Pode parecer bobo, mas um arquiteto que sabe a composição da trama de um tecido escolhe uma cortina mais adequada. Ao comprar um lençol, por exemplo, não adianta se atentar apenas à quantidade de fios, a composição é também importante. O toque de um lençol de algodão é muito mais confortável do que um outro que seja de muitos fios e de poliéster ou um tecido misto. Estes detalhes parecem pequenos, no entanto pode nos auxiliar a fazer melhores escolhas e mais conscientes.
Apesar de eu ter mencionado tecidos, direcionar o olhar para escolher acabamentos é também um detalhe importante. Acontece que se o material não for bom, o acabamento também pode não ajudar. Recentemente, um reel no instagram (link acima) me chamou a atenção. Nele, a autora mencionava como as saias disponibilizadas em redes de fast fashion estavam influenciando o olhar dos consumidores a ponto deles acharem uma saia com corte enviesado - um corte que valoriza a peça - datada, sendo a saia reta mais “atual” já que o modelo - além de ter sua produção muito mais em conta - é o modelo mais encontrado nas redes de fast fashion - que as consideram “trendy”. Isso nos mostra o quanto um olhar pode ser influenciado a ponto de se distanciar de um design de qualidade haja vista a profusão de imagens online.
Ainda no campo da moda, o olhar não se atenta apenas a qualidade, mas também à suas inspirações. Recentemente, enquanto eu olhava um sapato na Zara (foto à direita), me lembrei de já ter visto modelo semelhante em algum lugar. Ele me pareceu inspirado1 em um modelo Maya criado por Gabriela Hearst (ao centro), e que tem este nome em homenagem à bailarina Maya Plisetskaya e foi inspirado inspirado em uma sapatilha de ballet.
Ao ver os modelos lado a lado é possível observar como uma inspiração leva a outra (e como o olhar de um fotógrafo pode favorecer a propaganda do modelo também rs). Eu posso estar presumindo que o da Zara foi inspirado no de Hearst, no entanto, é possível reconhecer que os dois sapatos têm traços do modelo tradicional de sapato masculino conhecido como Derby, além disso, é possível ver como um design simplifica a inspiração, no caso do da Zara. A proporção do design de Hearst (modelo creme abaixo) é mais delicada e refinada para o meu olhar - mesmo que com mais traços - do que a proposição da fast fashion (modelo branco abaixo).
O mesmo acontece com modelos de design célebres ao serem reproduzidos. Nas imagens abaixo é possível notar a cadeira Cesca (1928), design de Marcel Breuer (lê-se Bróiêr). À direita, a imagem em preto e branco é do Knoll Archive, a do meio a reprodução vendida pela Westwing e a à esquerda, o modelo vendido pela Tok & Stok. Observe como a diferença no encosto sofre diferença em suas reproduções. Embora algumas pessoas não liguem para isso, me incomodou muito a falta de refinamento ao ver o modelo exposto na Tok Stok, afinal, estamos falando de um clássico do design copiado e vendido em larga escala.
A cadeira Standard do francês Jean Prouvé que recentemente teve várias réplicas colocadas a venda em sites brasileiros (fotos à esquerda) também apresenta modificações quanto ao seu design original como vendido pela Vitra (fotos à esquerda)2.
Ao falar sobre olhar e mobiliário é importante também falar sobre a história da produção destes mobiliários uma vez que isto influencia diretamente o valor do produto. Ano passado, por exemplo, tive a oportunidade de comprar uma cadeira da cesca com selo da Forma (empresa que a revendia no Brasil) pelo mesmo preço que a réplica estava na Westwing. Infelizmente, não consegui comprar a tempo, no entanto, é importante saber de coisas assim para não comprar “gato por lebre”. Quando falamos da poltrona mole de Sérgio Rodrigues, por exemplo, precisamos entender que atualmente ela é revendida pela Dpot, no entanto, encontrar uma peça da Oca à venda é uma raridade. Oca é a empresa que foi do próprio Sérgio Rodrigues. Entender os selos nos ensina a entender o valor de cada peça e sua valorização ou não num cenário no qual réplicas têm aparecido cada vez mais e mais.
O conhecimento aqui mencionado não é apenas para arquitetos e designers, mas também para todos os criativos e que buscam refinar seu olhar e ampliar o repertório. A observação, como mencionei, pode trazer insights valiosos especialmente para quem busca criar algo novo. “Em ‘A inteligência visual’ de Amy E. Herman (…) a autora menciona a “cegueira por desatenção” - quando a gente vê algo mas não observa, e como a observação é uma fina arte, uma habilidade capaz de revelar mais do que as pessoas dizem/contam não apenas na fotografia mas em diferentes situações.”
Como expus na edição “Inspirações de Julho”, fui a exposição “Dar forma à Forma” na Galeria Teo e eu fiquei imensamente feliz ao ver de perto alguns modelos que eu só conhecia por meio de publicações. Uma exposição que eu poderia ter visto em alguns minutos, eu me permiti observar por horas. Cada detalhe, cada patina do tempo me chamou a atenção. Foi uma experiência renovadora para o meu olhar e que nutriu e (muito) o meu espírito.
Para além de beleza, o design está ligado a funcionalidade. Gostaria de mencionar, mesmo que brevemente, os modelos de taças. Gosto sempre de mencionar taças pois acho que o exemplo é simples e interessante. Me recordo de um episódio da novela Pantanal que me causou grande estranhamento quando a personagem mencionava com ênfase que estava tomando um vinho bem específico e usava uma taça de pinot noir, cujo desenho é bem diferente do convencional. Aquilo me pareceu estranho, quase que desconexo entre cenografia e texto. No entanto, era apenas uma novela do mesmo jeito que Vera Fischer em Laços de família tomava vinho em taça de coquetel, o que também causava estranhamento. Embora hoje ainda não haja um consenso acerca da taça balão e flute e qual seria a melhor ou mais adequada para o consumo da bebida eu ouso dizer que a coupé, considerada a menos apropriada, é a que gosto. Lembra quando mencionei que fugir a regra era uma forma de achar nosso estilo? Pois bem, eu sei exatamente o que me atrai nela: o design, a aura de Great Gatsby… é uma experiência diferente, digamos. Acho que no caso da novela ela também acaba estando diretamente ligada à uma forma de expressão dos personagens.
Como o nosso olhar é transformado por nossas experiências, não poderia deixar de falar de comida. Já li que o nosso cérebro tem uma plasticidade de acordo com o meio, enquanto o nosso paladar não retrocede. Ao experimentar uma refeição autêntica não apenas a nossa referência muda, como o nosso paladar já não é mais capaz de voltar ao original - no sentido que quanto melhor a qualidade mais seletivos nos tornamos. Literalmente nosso paladar está diretamente ligado com a forma com a qual experimentamos o mundo. Da forma como o nosso olhar - quando refinado - prefere o design mais sofisticado e estranha quando vemos uma mesma peça ser reproduzida com menos refinamento, quase que de forma grosseira, o nosso paladar ao provar uma culinária mais sofisticada, acaba evoluindo.
Como constriumos nossas referências?
Uma vez, uma pessoa postou na internet falando que recebeu x posts dizendo “talvez eu seja referência” neste tema para estas pessoas. Quem você vê como referência importa. Não é apenas saber a teoria, mas a construção do todo, a experiência que a pessoa propõe. Aqui em Campinas tem dois cafés (vou chamar de maior e menor) cujos donos sabem muito de café, mas o ambiente de um acaba oferecendo uma melhor experiência do que o outro e com isso, o café menor acaba não tendo sua qualidade de produtos muito apreciada uma vez que a experiência que propõe é considerada por alguns consumidores menos interessante visualmente do que a do café maior. Ambos os espaços são muito apreciados por mim. O maior é onde eu vou quando quero ter uma conversa e provar apenas um café diferente - eles oferecem até em taças, é bem bonito. Já o segundo eu busco quando quero comer um café com um doce bem feito. Um tem uma experiência melhor que o outro mas o outro me permite levar um pouco da experiência para casa. E eu acabo tendo que saber onde levar cada pessoa de acordo com o que seu olhar valorizaria.
Nas imagens acima, coloquei 3 exemplos de diferentes café que tomei no “café maior”. Cada café é apresentado de uma forma diferente proporcionando uma nova experiência na hora de tomar café, e isso corrobora para a transformação do olhar em relação ao tema.
Acho que é mais fácil entender o “olhar” quando pensamos que curiosidade nos faz pesquisar, o que amplia o nosso vocábulo e repertório, e que curiosidades, pesquisas e experiências modificam o nosso olhar. Além disso, estar aberto à experimentações, ser curioso e criar memórias também nos tornam mais criativos. Em resumo, tudo está conectado e precisamos estar sempre em movimento para que isso seja ampliado cada vez mais, seja lendo, experimentando novos ingredientes, frequentando museus e exposições... nutrindo nossa mente. Espero que possa contribuir com pelo menos algo novo para que o seu olhar também seja transformado por meio da leitura desta newsletter.
Até breve!
Um adendo: Modelos semelhantes podem ser também uma questão do Zeitgeist (o espírito do tempo). Nem tudo é sinônimo de cópia.
Este post busca mostrar como as é importante saber reconhecer designs autênticos e não cair na armadilha de comprar reproduções de peças não autênticas. Para isso, conhecer o design autêntico é mais do que importante. Essa educação do olhar é fundamental para isso.